O homem velho é o rei dos animais
27/09/2018 19:22 - Atualizado em 28/09/2018 17:46
Em 1968, quando eu tinha 21 anos de idade, conheci um casal muito simpático. A família toda era formada por pai, mãe, dois filhos e um homem muito idoso. Várias vezes, estive na casa dessa família, geralmente aos domingos. Durante o almoço, o velho homem saía do seu quarto para a refeição. Eu ficava impressionado com sua aparência. Ele parecia ter ultrapassado em muito os cem anos. Normalmente, limitava-se a cumprimentar a todos, almoçar e voltar para o seu quarto, onde passava a maior parte do tempo.
Houve um dia em que, terminado o almoço, o casal pediu para ele conversar um pouco comigo. Ele cochilou várias vezes enquanto pronunciava palavras desconexas. Disse que seu nome era Eustáquio e que teve uma vida muito turbulenta. Com voz baixa, quase inaudível, contou-me que nasceu em 1850 e conheceu Machado de Assis em 1875. Não pensei que estivesse mentindo. Concluí apenas que sua mente variava com a idade. Logo em seguida, ele dormiu deitando a cabeça na mão e apoiando o cotovelo no braço da poltrona.
Na saída, o casal me perguntou se eu havia gostado da conversa. Respondi que sim. Disse que achei interessante a imaginação dele. Certamente, afirmar que conhecera Machado de Assis era apenas uma metáfora para idade muito avançada. Contudo, o casal confirmou a informação do velhote. Ele de fato conheceu Machado de Assis. Se fosse verdade, Eustáquio contaria com 118 anos de idade. Sei que é possível alcançar idade tão avançada, mas tratava-se de um caso raríssimo naquele tempo. Inconscientemente, as pessoas tinham modos de vida que as levavam a morrer cedo. Basta ler os romances de Machado para notar que uma pessoa de 60 anos já era bastante velha no tempo do grande escritor.
Aos poucos, Eustáquio foi se abrindo comigo. Ele me disse que a história do romance “Helena”, publicado na forma de folhetim, como era muito comum na época do grande mestre, foi vivida e narrada por ele a Machado. O velho era no mínimo imaginoso. Sua narrativa prosseguiu lentamente a cada domingo. Aos poucos, sua mente parecia iluminar-se com as lembranças do passado.
Ele me disse que o romance “Helena” foi escrito na fase romântica do grande mestre da literatura brasileira e publicado na forma de livro em 1876. A princípio, Machado mostrou-se reticente a um encontro com um desconhecido e desconfiado da história que ele contava. “Era natural” – atalhou o velho – “Eu não passava de um estranho que emergia de uma história muito triste e que certamente não poderia merecer a atenção de um escritor de 34 anos em plena fase romântica. Minha vida era pesada demais para ele e eu poderia ser um mentiroso procurando enganar um escritor famoso”.
Aos poucos, o romancista foi assimilando meu drama e acabou concordando que ele daria um romance desde que mudanças profundas fossem efetuadas naquilo que eu lhe narrava. Meu pai era um rico fazendeiro produtor de café no vale do Paraíba. Nossa família se constituía de três pessoas apenas. Eu era filho único. Meu pai morreu em 1870 e não em 1859, como Machado inicia o romance “Helena”. Quando seu testamento foi aberto, minha mãe quase morreu também. Meu pai revelava que tinha uma filha nascida de um caso amoroso e que deixava para ela toda sua herança, que deveria ser compartilhada entre seus três herdeiros. Insistia também para que Helenice – esse seu verdadeiro nome, e não Helena – fosse morar conosco. Claro que minha mãe se recusou a aceitá-la. No entanto, um padre nosso amigo insistiu para que minha mãe perdoasse meu pai, aceitasse a filha natural e a acolhesse em nossa casa.
Helenice contava com 17 anos e era interna num colégio de moças. Quando ela entrou na minha casa, fiquei fascinado com sua beleza e logo me apaixonei secretamente por ela. Mais tarde, soube que acontecera o mesmo com ela. Por mais que fosse minha meia-irmã, eu não cresci com ela. Meu coração dizia que ela era apenas uma mulher. O drama tornou-se mais grave porque eu tinha um compromisso de casamento com Eunice, filha de um rico amigo de meu pai. Tratava-se de uma moça fútil. Eu não a amava. Nosso casamento só iria acontecer por combinação entre os pais e por conveniência social. Da minha parte, eu estava dividido. A paixão por minha meia-irmã me consumia aos poucos.
Você é jovem e sabe a força da testosterona. Já casado com Eunice e com um filho pequeno, Helenice e eu não conseguimos controlar nossos instintos e nos amamos fisicamente. Nem eu nem ela conseguimos nos controlar. Ela ficou grávida. Acabei repetindo o comportamento de meu pai exatamente com a filha dele e minha irmã. Repleto de remorso, acabei contando tudo para Eunice. Ela me revelou que suspeitava muito de Helenice, que não gostava da nossa troca de olhares, que já havia feito esse comentário com seu pai e que morria de ciúmes. Ela se separou de mim e foi morar na Europa com meu filho. O caminho para mim e Helenice estava aberto. Nosso propósito era mudarmo-nos da Tijuca, onde ficava nossa chácara, para a fazenda do meu pai.
Aconteceu então uma tragédia: o parto de Helenice ocorreu antes dos nove meses. Naquela época, a medicina não era ainda evoluída como hoje. Helenice também remoía um grande sentimento de culpa. Ela chorava diariamente e se acusava de ter sido leviana e de ter estragado meu casamento com Eunice. No parto, ela e meu filho morreram. Abandonei tudo. Não me interessava mais reconstruir minha vida. As pessoas que eu amava deixaram a cidade do Rio de Janeiro ou a vida.
Foi quando eu tive a rara oportunidade de conhecer Machado de Assis por meio de um amigo de meu pai que era jornalista. Como lhe contei, a recepção foi fria, mas aos poucos ele foi se interessando pela minha triste história e fazendo apontamentos. Entendeu de escrever um livro em capítulos de folhetim com o título de “Helena” em lugar de Helenice. Em vez de situar a narrativa no fatídico ano de 1875, ele lançou os acontecimentos para o ano de 1859 e seguintes. Ele quis me proteger e a todos os envolvidos para que ninguém se identificasse e manifestasse algum protesto. Meu drama foi traduzido numa linguagem romântica, embora fosse melhor retratado por uma abordagem naturalista ou realista.
No romance, meu pai apenas se apaixona por uma mulher, que não era a minha mãe e que já tinha uma filha. Essa mulher – não interessa seu nome– enganou meu pai dizendo que era viúva, quando seu marido estava no Rio Grande do Sul, visitando a família. Ao retornar ao Rio de Janeiro, encontrou a esposa vivendo na condição de amante do meu pai. Na realidade, ela era solteira e sua filha tinha meu pai como seu também. Ela não era minha meia-irmã e dela, só tomei conhecimento depois da morte do velho fazendeiro, como mostra o romance.
De fato, Helenice, tal qual Helena, esforçou-se para que eu casasse com Eunice. Ela sabia que nosso amor era impossível e que qualquer relacionamento sexual seria incestuoso. A D. Úrsula do livro não era minha tia. Era minha mãe e não tinha esse nome. Ela se chamava Marieta. Antes que eu me envolvesse sexualmente com Helenice, minha mãe também morreu. Creio que pelo desgosto de perceber que eu estava apaixonado por minha meia-irmã e ela por mim. Mãe lê sentimentos dos filhos pelo olhar. Ela notava muito bem que eu e Helenice nos desejávamos com concupiscência.
Helenice ficou grávida depois que minha mãe morreu. Sem minha mãe, sem minha mulher legítima e meu filho, sem minha amada e seu filho nada mais me restava. Depois de narrar minha desgraçada vida a Machado de Assis, usei o dinheiro da herança para viajar pelo mundo. Estive na Europa. Conheci o Egito. Andei pelos países da Líbia, nome que, naquele tempo, dava-se à África. Acabei na Índia e me apaixonei pelo país. Eu era meio incrédulo. Declarava-me católico por comodismo social. Na Índia, conheci atitudes místicas religiosas que me encantaram. Por algum tempo, fui discípulo de um guru. Depois, um inglês me convidou a conhecer o Tibet. Que beleza de país! Os monges budistas lamaístas desenvolveram técnicas de respiração, mediação e alimentação que lhes permitia prolongar a vida até por duzentos anos. Permaneci no Tibet por sete anos. Aprendi as práticas budistas da felicidade.
Por mim, eu viveria lá. Eu havia me desprendido das questões mundanas. Mas fui encontrado pelas correspondências enviadas pelo meu filho com Eunice. Ele contava, então, com 17 anos e estava enfrentando problemas com os bens da família. Por compaixão — apenas por ela — retornei ao Brasil. Eu não compreendia mais o mundo ocidental. Tive dificuldades de lidar com coisas mundanas. Assim que resolvi tudo, retornei à Índia. Antes de partir para o Tibet, conheci um historiador de nome Panikkar. Ele via a colonização ocidental do mundo por outra visão. Aprendi com ele que o ocidente era arrogante e julgava as demais culturas como inferiores e passíveis de dominação. Na Índia, entendi-me como corpo e espírito. Panikkar ensinou-se a me situar no mundo. Vivi até 1960 no Tibet e acabei voltando para o Brasil. Movido pela compaixão budista, meu objetivo era ensinar o caminho do grande mestre. Poucos me deram atenção aqui.
Pelo meu sobrenome português (na Índia, eu me chamava Anundian Deva e no Tibet meu nome era Khampa), publicado certa vez numa reportagem, acabei sendo procurado pelo meu bisneto. Seu interesse era saber se eu era seu parente. Ele jamais acreditaria que seu bisavô estaria vivo. Seu espanto foi incomensurável. Seu pai, ou seja, meu neto já havia morrido, mas seu bisavô estava vivo graças às práticas budistas. Não creio que eu tenha encontrado a salvação a ponto de não mais me reencarnar. Meu carma é pesado. No entanto, creio que boa parte dele foi queimado graças a minha conversão ao budismo. Eu gostaria de terminar meus dias no Tibet, mas agora é tarde. Ficarei com meu bisneto, sua mulher e meus tataranetos.
Eustáquio morreu em 1970 com 120 anos de idade.
 
 

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