Poesia chinesa antes do ocidente
*Adélia Noronha - Atualizado em 12/07/2018 18:29
Como as civilizações mesopotâmica e egípcia, a chinesa originou-se no vale de um grande rio: o Amarelo. Seu núcleo duro, ou seja, o centro de sua cultura, parece ter nascido pronta. Já nos seus primórdios, o povo, a língua falada e a escrita perpassarão toda a história da civilização chinesa. Suas primeiras dinastias — Xia, Shang e Zhou — confundem-se com o plano mítico. As pesquisas arqueológicas revelaram que Xia, Shang e Zhou foram estados paralelos ou sucessivos do segundo milênio a. C. O estado Shang desenvolveu arte do mais alto requinte. Sua religião era politeísta e xamanista. A base da economia chinesa era a agricultura e a pecuária, havendo também manufaturas. Formulações religiosas e filosóficas mais elaboradas, como o Confucionismo e o Taoísmo, apareceram no fim desse tempo, no século VI a. C.
A história da civilização chinesa foi marcada por unificações e desuniões políticas. No final do século V a. C., sete Estados resultaram de longos conflitos e continuaram a lutar até a supremacia do estado Qin. Começa então a China imperial sob a dinastia Qin (221-206 a. C.). O rei Qin Shi Huangdi chegou ao poder em 221 a.C. Durante essa dinastia, iniciou-se a construção da Grande Muralha. Daí em diante, a história da China será marcada por fases de unificação e desunião, com golpes de estado, rebeliões, guerras internas e invasões. Mongóis e manchus invadiram o país e fundaram dinastias. O apogeu da China ocorreu durante a dinastia Tang, no século IX d. C., com o auge da literatura e das artes. O budismo, que havia penetrado no país no século I, alcançou grande prosperidade.
A Grande Muralha, um grande canal de navegação, cidades suntuosas, arquitetura, escultura, pintura e literatura da mais alta qualidade e um centro de produtos cobiçados por muçulmanos e cristãos elevaram a China ao patamar das grandes civilizações. Com a penetração das influências e dos interesses econômicos ocidentais, o império chinês chegou ao fim durante a dinastia Qing, em 1911, quando foi proclamada a república no país.
A poesia da dinastia Tang (618-907), idade de ouro da poesia, ganhou a “Antologia da poesia clássica chinesa” (São Paulo: Unesp, 2013) com cuidadosa tradução, organização, notas e introdução de Ricardo Primo e Tan Xiao. O livro traz uma seleção dos poetas mais expressivos da dinastia numa edição bilíngue.Melhor dizendo: uma edição em dois sistemas de escrita completamente distintos. Como esclarecem os organizadores, “A escrita chinesa é, em si mesma, um sistema intersemiótico, trazendo recursos poéticos desconhecidos no Ocidente.”
Quase ninguém conhece os nomes de Li Bai, Du Fu, Bai Di, Wang Wei, Bai Juyi, Meng Haoran, Li Shangyin, Du Mu, Han Yu, Wen Tingyun, Li He, Wang Zhihuan, Li Yi, Zhang Jiuling, Xuan Jue, Wei Yingwu, Lin Yuxi, Wang Jia, Qian Qi, Jia Dao, Liu Zongyuan, Cui Hao, Chang Jian, Wang Han, Xa Hun, Wang Changling, Cen Shen, Meng Jiao, Luo Yin, Li Ye, Xue Tao, Yu Xuanji e Gao Pian. Não se trata de quantidade. Houve muitos poetas. O livro traz alguns de altíssima qualidade e de difícil apreciação por ocidentais.
O que me agrada na poesia chinesa anterior à chegada dos europeus é o distanciamento do poeta em relação a si mesmo. No ocidente, é muito comum os poetas girarem em torno do próprio umbigo, como se ele fosse o centro do mundo. O eu poético é um eu narcisista. Os poetas antigos da China olhavam para fora de si, como se não existissem, valorizando a sociedade, a religião e a natureza. Eles citam-se uns aos outros e também filósofos e intelectuais. Mas conservam o distanciamento. Um exemplo sacado de Li Bai: “pássaros alçam voo desvanecem/a última nuvem erra e se dissipa/um infinito olhar mútuo fascínio/só o Monte Reverência permanece”. O poeta dilui o ego na totalidade da natureza, como procuravam alcançar os taoístas e budistas.
Quanto à guerra, Du Fu mostra influência do confucionismo: “Toda matança deve ter limite,/todo país mantenha-se às fronteiras./Se um invasor se pode repelir,/por que ferir e massacrar também?”. Uma das marcas das culturas orientais, além do Indo, é a tolerância, artigo raro no mundo de hoje. No belo poema “Noite de outono na montanha”, de Wang Wai, o eu poético desaparece. Claro que alguém vê, pensa e escreve, mas ele parece ausente. Até mesmo o título é poético em suas três palavras centrais — noite, outono, montanha: “Montanha vazia depois da chuva/o ar ao fim da tarde traz outono/Dentre os pinheiros brilha luz da lua/sobre os rochedos flui límpida fonte/Barulho aos bambus riem as lavadeiras/mexem-se lótus vêm barcos à pesca/Acaso foi-se o odor da primavera:/ senhor, que tudo guardes em ti mesmo”. Todos os elementos de uma típica poesia do extremo-oriente pré-ocidental estão presentes neste poema de rara beleza. Como a escrita tradicional da China lida mais com ideias que com palavras, a pontuação inexiste. É preciso acrescentá-la na transcrição/tradução para o ocidente.
Ainda é Wang Wai, que reflete sobre o tempo, o envelhecimento e a morte com a proverbial (hoje extinta) sabedoria oriental: “tardia idade agrada esta quietude/já mil assuntos passam não preocupam/chegou-se ao fim inútil insistir/antes voltar a esta floresta antiga/vento aos pinheiros sopra e afrouxa o cinto/a lua ao monte brilha para a harpa/perguntas qual a mais alta verdade:/ canto de pescador entrando no rio”. Wang Wai é considerado o maior representante do budismo Chan (Zen no Japão) não apenas na dinastia Tang, mas na história da China. Ilustremos sua poética com mais este “Celebração dos campos e jardins”: “depois da chuva é mais vermelho o pessegueiro/na bruma da manhã mais verdes os salgueiros/e ainda há flores não varridas pelo chão/pássaro canta e todos dormem na montanha”.
O budista Bai Juyi alternou vida pública com vida recolhida. É dele “A fonte das nuvens brancas”, que escolhemos para ilustrar sua obra: “no pico do alto céu a fonte às nuvens brancas/as nuvens se comprazem e as águas descansam/por que razão precipitar-se das alturas/caindo em ondas transbordantes sobre o mundo” Em Li Shangyin, ouve-se um prenúncio de Shakespeare apenas por coincidência: “Servir-te a derramar o vinho à despedida;/não venha a dor traçar-te rugas, marca ao talhe,/Só separar-se, antes da morte, é mesmo triste;/não poupa o vento à primavera os ternos galhos.”
De todos os poetas da dinastia Tang, cerca de 190 eram mulheres entre 2.200 autores, o que mostra a força feminina na cultura chinesa. Tradicionalmente, a mulher era educada para o casamento, a família e o lar. Para gozar de maior liberdade, a mulher podia tornar-se uma monja ou uma cortesã. Nessa condição, ela podia viajar livremente. Foi o caso de Yu Xuanji (844-869 d.C.). Ela deve ter produzido muito nos seus 25 anos de vida, mas restaram apenas 48 poemas e cinco fragmentos. Era bela e inteligente. Casou-se, foi monja e cortesã. O que restou da sua obra foi traduzido por Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, que também redigiram a apresentação e as notas (Poesia completa de Yu Xuanji. São Paulo: Unesp, 2011). Como seus pares, ela usava palavras simbólicas e dialogava com outros autores. Em sua homenagem, escolhemos o poema “Para os salgueiros junto ao rio”: “Vultos em jade às margens devolutas/à névoa assombram pavilhões distantes/Reflexos deitam-se no rio do outono/e flores descem sobre pescadores/Peixes ocultam-se às raízes densas/enlaçam os ramos barcos visitantes/respiração da noite, a chuva e o vento/ecoam tristes sonhos revolutos”. O poema é uma verdadeira pintura. Aliás, o grande pintor Tang Yin, da dinastia Ming, é autor de pintura conhecida como “Pescadores do rio do Outono”, de uma delicadeza intraduzível e que ilustra este artigo.
Concluamos estas anotações, que seriam bem mais longas não fosse o espaço disponível, com o poema “Ao saber que o oficial Li havia retornado de uma pescaria”: “O olor do lótus assenta-lhe à cor das roupas/Conduza o verão seu barco ao ancoradouro/Quisera a vida destes patos-mandarins/sempre a nadar com seu par junto à pescaria”.
Aguardemos a reunião de poemas completos de outros autores que figuram na antologia.

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