Aos 41 anos de idade, Ana Paula Maia já publicou sete livros. O mais antigo deles é “O habitante das falhas subterrâneas”, de 2003. Seguiu-se a ele “A guerra dos bastardos”, de 2007. Dois anos depois, veio “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, um livro com dois contos. Na verdade, os contos são dois pequenos romances, cuja origem situa-se numa época não definida. Em 2011,“Carvão animal”, outro romance, esclarecerá a origem dos personagens de “Entre rinhas”. A produção da autora prossegue em “De gados e homens”, de 2013. Após intervalo de quatro anos, ela retorna à cena literária com “Assim na terra como embaixo da terra”. No alvorecer de 2018, ela lança “Enterre seus mortos”. Quase todos os seus títulos foram editados pela Record. Seu livro mais recente ganhou a atenção da Companhia das Letras, editora símbolo de promoção de autores por divulgar literatura considerada de qualidade, embora nem sempre ela prime por esse princípio.
Embora negra — na verdade mestiça —, Ana Paula Maia não aborda em seus livros as reivindicações de mulheres e negros. As mulheres frequentam pouco a sua ficção, normalmente dominada por homens. A questão presente em todos os seus livros são os miseráveis da mais baixa camada social. Seus personagens são paupérrimos, mutilados, solitários e sujos. Dizem que Ana Paula escreve como homem. Parece uma forma de machismo disfarçada. Não existe uma forma masculina ou feminina de escrever. A escrita enquanto forma não conhece gênero. O conteúdo sim. A ficção de Ana Paula trata dos humanos esquecidos e do ambiente degradado.
Paisagem. As paisagens pintadas por Ana Paula são sempre desoladas. Sempre existe um rio poluído a tal ponto que em suas águas não habita mais nenhuma forma de vida comumente entendida, ou seja, plantas e animais. Formas microscópicas, como bactérias, não vêm ao caso. Mas há quem ainda se banhe em suas águas para batismo, como membros de denominações pentecostais. Embora apareça céu azul, normalmente ele está coberto de fumaça e de fuligem. O solo também não é poupado de contaminação. A fauna é muito reduzida. A frequência maior recai sobre javalis e abutres. Trata-se de uma realidade irreal. Vez que outra, ela esclarece que abutre é urubu e que javali é uma espécie exótica ao Brasil, embora o nome do país esteja ausente.
As paisagens inóspitas de Ana Paula se localizam num país escalavrado em que a miséria do povo se estende à miséria do ambiente natural. Poucos escritores brasileiros atuais se preocupam com a natureza como Ana Paula. Não que ela denuncie enfaticamente a destruição da natureza. Mulher negra e não militante de causas, seria de se estranhar que ele assumisse a causa ecológica. Além do mais, é preciso muito cuidado para não cair numa militância explícita na literatura. O risco é comprometer o valor da obra. Mas, implicitamente, existe crítica na sua exposição das condições humanas e ambientais, embora não denúncia fácil.
Só em “Enterre seus mortos” os animais aparecem mais pelo enfoque do livro. Nele, Edgar Wilson, um personagem frequentador de outros livros seus, juntamente com Tomás, um padre excomungado por assassinato, trabalha num serviço que recolhe animais mortos nas estradas e os mói num grande triturador para transformá-los em adubo. Mais um toque irreal da autora. As estradas de rodagem do país são a segunda causa de morte de animais, depois do tráfico. E não existe, entre nós, nenhum serviço de recolhimento de animais mortos por atropelamento. Muito menos qualquer sistema adequado de proteção à fauna para não morrer em rodovias. Para os miseráveis, humanos e animais não são diferentes. Edgar Wilson e Tomás encontram uma mulher e um homem morto à beira de estradas sem que ninguém lhes reclame os corpos. Embora excomungado, Tomás reza por humanos e animais mortos.
Raramente aparecem cidades. O olhar de Ana Paulo se volta para as periferias urbanas semi-rurais onde ainda existem campos não construídos, onde pastam vacas, onde existem botequins muito ordinários e onde nem mesmo a polícia aparece com frequência. Ali, vivem os esquecidos que fazem a sua própria vida.
Personagens. Apesar da miséria dos personagens, eles guardam ainda alguma piedade religiosa sempre que possível. Edgar Wilson trabalha num abatedouro de porcos em “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”. Dez anos antes, ele trabalhava nas mais insalubres condições duma mina de carvão que explodiu. Ele sobreviveu. Tempos depois, ele será encontrado num abatedouro de gado bovino. Sua especialidade é atordoar o animal para que ele seja morto sem dor a fim de que sua carne não ganhe gosto ruim espalhado pelo sangue do animal em virtude do medo. Edgar se mostra mais caridoso, abençoando os bois antes de tonteá-los. A carne deve estar saborosa para fabricar hambúrgueres.
Outro personagem que frequenta seus romances é o mameluco Bronco Gil. Ele é caladão e usa arco e flecha como armas. Erasmo Wagner, que apareceu primeiro como bombeiro especializado em corpos calcinados e depois como lixeiro, é outro. Quando era bombeiro, ele lidava com coisas velhas e pessoas calcinadas. Quase todas precisavam ser identificadas pela arcada dentária. Um foi identificado por “Uma marca de nascença nos pés. Aquele pé ficou praticamente intacto justamente para identificá-lo.”
Pulp. A violência de Ana Paula é caricata, como nos filmes “Mash”, de Robert Altman, e “Pulp Fiction”, de Quentin Tarantino. As pulp fictions ganharam destaque a partir de 1900 como entretenimento sem grandes pretensões artísticas. Exemplos de pulp nos livros de Ana Paula Maia: 1- um irmão doa um rim à irmã. Mais tarde, mata-a para retomá-lo, pois está precisando dele por motivo de saúde. Antes de recolocá-lo em seu corpo, guarda-o na geladeira. Seu pai o descobre e o come com amigos; 2- Enquanto uma mulher agoniza por causa de um acidente de estrada, Edgar e o amigo tentam sem pressa pedir ajuda como se nada de grave estivesse acontecendo; 3- A tia de um dos personagens virou prostituta e perdeu os dentes de tanto praticar sexo oral; 4- Num restaurante ordinário de beira de estrada, uma refeição vale uma seção de sexo grátis; 5- Edgar ganha o troféu de ouro Porco Abatido; 6- a visita de um grupo de estudantes para conhecer o matadouro; 7- Edgar Wilson encontra uma mulher enforcada numa árvore e a guarda num freezer. Depois, ele encontra o corpo de um homem; 8- Uma velha chocou os ovos de uma galinha; 8- “O forno principal explodiu e os dois corpos incinerados por incompleto foram lançados aos pedaços pela sala, e suas partes crepitantes atiradas ao ar são como pequenos fogos de artifício.” 9 - Um homem foi assassinado. Ele violentava crianças com lágrimas nos olhos ainda mais devotos; 10 – No último romance de Ana Paula, Edgar Wilson afunda o pé esquerdo na barriga de um morto mal embrulhado. Com o pé atolado, preso às costelas do cadáver, ele segura a ânsia de vômito.
São alguns exemplos colhidos dentre muitos para mostrar o humor macabro da autora, que não costuma criar clímax. Até os nomes dos personagens são bizarros. E eles são quase sempre os mesmos, a pular de um livro para outro, como Mandrake, de Rubem Fonseca, e Beatriz, de Cristovão Tezza. Como nos quadrinhos, existem personagens que vivem histórias diferentes. Mais um traço do pulp.