Felipe Fernandes - A herança da revolução
Filme: Uma Batalha Após a Outra - Considerado um dos grandes cineastas estadunidenses dessa virada de século, Paul Thomas Anderson é uma artista dono de uma filmografia poderosa, que trânsita entre gêneros em filmes ora intimista, ora repleto de personagens. Paul Thomas Anderson busca contar sua história através da vivência de seus personagens fazendo dessa construção, muitas vezes, mais essencial do que a narrativa que está sendo apresentada.
Escrito por Anderson, o filme é uma livre adaptação do livro Vineland de Thomas Pynchon, autor que ele já havia adaptado no lisérgico Vício inerente. Aqui, Anderson adapta o cerne da história para os dias atuais, em um filme que começa com uma declaração de guerra, uma guerra política e ideológica que funciona como cenário para um drama sobre paternidade, trauma e paranóia, em uma espécie de distopia assustadoramente atual.
O filme tem um ritmo intenso e abre com um grande epílogo que apresenta a ação dos French 75, grupo revolucionário que tem como missão combater o sistema, principalmente libertando e protegendo imigrantes. Nesse contexto, acompanhamos a relação de Perfidia (Teyana Taylor) e Bob (Leonardo DiCaprio), ele um tímido membro que age como suporte, já ela é a cara da revolução. Explosiva, provocante, é quem dá as ordens e lidera o grupo em grande parte das ações.
Desde esse epílogo, Anderson cria uma narrativa caótica, somos jogados dentro dessa revolução violenta, ao mesmo tempo que somos apresentados ao casal. A revolução e o relacionamento correm em paralelo. A ação é afrodisíaca, o sexo e a luta armada dividem espaço, ora se cruzando, ora se anulando e são dessas intercessões que a história toma uma novo rumo.
Perfidia se entende como a própria revolução. Herdeira de uma família de revolucionários, ela vive pela luta, como uma reencarnação moderna das heroínas do cinema blaxploitation, ela vive no limite da intensidade e quando sua vida é mudada pela gravidez, ela parece não compreender isso. Ela não se encaixa no perfil comum, a cena dela com uma barriga já bem grande atirando com um fuzil é de um simbolismo muito forte, é a imagem que reflete os grandes dilemas do filme.
A maternidade chega, mas a revolução não pode parar. Tomada por sua inquietação e por uma aparente depressão pós-parto, ela volta pra revolução e deixa Bob com a filha e os acontecimentos do final deste epílogo reforçam outra ideia muito presente no longa, a de que não existe revolução sem consequências.
Após esse epílogo, Bob assume o protagonismo do filme. Vivendo escondido, paranoico, ele não perdeu sua visão de mundo e seu espírito combativo, a cena da escola é muito eficiente em comprovar isso através dos questionamentos frente a diretora, mas a revolução ficou para trás, ficaram o trauma, a paranóia e a eterna depressão pós anos de luta, questão retratada por muitas pessoas na mesmo condição. Tudo isso precisando lidar com a clandestinidade e a vida de uma adolescente.
Quando as consequências do passado voltam para cobrar seu preço, entendemos que o mundo não mudou, a revolução continua, agora de outras formas e é justamente nessa retomada forçada de Bob a sua antiga vida, que voltam o caos e a violência, com consequências maiores, pois se Bob abandonou a luta armada em função de sua filha, agora ele não tem controle sobre ela, que vai precisar tomar suas próprias escolhas.
A obra consegue balancear ação, drama familiar, sátira, suspense. Há cenas de ação fortes, mas também momentos intimistas, de paranóia, medo, culpa. Esse equilíbrio dá profundidade. O filme fala bastante direto com o clima político polarizado da atualidade e aborda temas como autoritarismo, xenofobia, injustiça social, radicalização, Anderson usa a ficção para ecoar o presente, o que torna o filme um retrato de nossos tempos.
Em meio a tudo isso, ainda existe espaço para um humor focado nos absurdos, quase caricaturais em alguns momentos, mas que funciona justamente por ir até um limite que não rompe com tudo o que foi construído. A sequência absurda entre Bob e o Sensei Sérgio (Benício Del Toro) é o ponto alto do filme, nessa costura entre ação, tensão e humor.
Outro personagem que merece destaque é o antagonista Lockjaw (Sean Penn). Um coronel que comanda o campo de detenção do início do longa e apesar de extremamente preconceituoso, demonstra na intimidade desejo pelo foco de seu preconceito. Sean Penn o interpreta com brilhantismo, repleto de tiques nervosos e expressões rígidas, como se constantemente ele estivesse internamente lutando contra alguma coisa. Um homem poderoso, cheio de ambição e insegurança, uma combinação sempre perigosa
Uma Batalha Após a Outra é uma obra ambiciosa e desconfortavelmente atual. Representa um dos trabalhos mais politicamente engajados de Paul Thomas Anderson, que entrega um filme que fala de revoluções fracassadas, da herança da culpa e da continuidade da resistência, tudo isso com uma mistura de ação, sátira política e drama intimista. É um filme grandioso, que trata da força das relações pessoais como combustível para mudança social.