Folha Letras - Antônio Roberto Fernandes, o doutor poeta
- Atualizado em 11/06/2025 07:32
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Wellington Cordeiro*
Em Campos dos Goytacazes, a história revela uma rica e surpreendente conexão entre medicina e literatura. Médicos, dedicados à ciência, também se destacaram nas artes da escrita, perpetuando memórias, emoções e saberes. Um marco expressivo dessa relação foi o lançamento, em 2023, do livro da Sociedade Fluminense de Medicina e Cirurgia, “Médicos que pertencem ou pertenceram à Academia Campista de Letras”, de autoria do acadêmico Dr. Welligton Paes, reconhecido memorialista campista.

A obra trouxe à tona nomes de médicos-escritores, como Antônio Pereira Nunes, Antônio Roberto Fernandes, Ewerton Paes da Cunha, Manoel Alberto Barbosa Guerra, Mário Ferraz Sampaio, Nylson Cardoso de Souza, Renato Alves Moretto, Sebastião José de Siqueira, Vanda Terezinha Vasconcelos, Walter Siqueira, Welligton Paes e Wilson Paes. Há ainda outros que, mesmo sem pertencerem à Academia Campista de Letras, deixaram sua marca na literatura local, como Álvaro Borges Vieira Pinto, Álvaro de Lacerda, Alberto de Souza Rocha, Angela Sarmet Moreira, Inácio de Moura, entre outros. Engana-se quem pensa que esses autores escreveram apenas sobre medicina ou ciência. Seus talentos com as palavras os levaram a explorar diversos gêneros literários, revelando uma sensibilidade e criatividade que iam muito além do campo clínico.

Neste texto, destaca-se a trajetória de um desses nomes, mas que, diferente de todos, se graduou médico e optou por ser exclusivamente poeta: o jovem fidelense Antônio Roberto Fernandes, nascido em 31 de maio de 1945, filho de Anleifer Leite Fernandes e Djanira Carvalho. Primogênito de uma família com oito filhos, aprendeu a ler em casa, com o pai. Aos sete anos, iniciou os estudos em uma escola no interior de São Fidélis. Por estar adiantado em relação aos colegas, foi transferido para a Escola Barão de Macaúbas, onde completou o ensino fundamental e médio.

Com orgulho da família, foi aprovado no concorrido vestibular para o curso de Medicina da tradicional Faculdade de Medicina de Campos. Durante a graduação, sua paixão pela literatura não apenas permaneceu, como também se fortaleceu. Em meio a um curso marcado por conteúdos técnicos — nomes de músculos, artérias, órgãos, doenças e medicamentos —, Antônio Roberto conseguiu a proeza de manter viva sua veia poética.

Quem imaginaria um trabalho de farmacologia e terapêutica experimental escrito em versos? Mas foi assim que ele surpreendeu o professor Lauro Sollero, em 29 de outubro de 1971. O trabalho tratava do Emprego terapêutico da Digital.

“...Toda a Farmacologia
nos encanta e extasia
mas de um modo especial,
trataremos neste instante
de um ponto muito importante:
- o emprego da Digital” …

Já em sua primeira aula no frio Laboratório de Anatomia, impactado pelos corpos ali destinados ao estudo — em sua maioria indigentes —, escreveu o marcante poema “Palavras ao cadáver Indigente”, que ainda hoje é usado em convites de formatura de cursos de medicina pelo país, muitas vezes, sem citar a autoria.

“Vejo-te os pés calejados
e me pergunto onde andaste
quantos caminhos pisaste
em busca de uma ilusão.
Mas o mundo foi mesquinho,
teus caminhos se estreitaram
e o chão que os teus pés pisaram
foi todo pisado em vão”…

Durante o curso, o poeta também prestou homenagem à FMC compondo, letra e melodia, o que chamou de Hino da Faculdade de Medicina de Campos — uma verdadeira ode à instituição que marcou sua vida acadêmica.

...“Muitos problemas terei que vencer
Mas vencerei, porque serei
O que esta escola ensinou-me a ser”.

E não parou por aí. Em sua colação de grau, num dos momentos mais emocionantes da formação universitária, foi naturalmente escolhido para discursar em nome da turma. Com sua já conhecida sensibilidade poética, produziu um dos mais belos discursos já ouvidos em cerimônias de formatura da instituição. A força do texto garantiu sua publicação em meia página do jornal Reportagem, em 1975, que o descreveu como “o doutorando – poeta, inteligente, culto, autor da originalidade” e mencionou, inclusive, que ele já teria escrito até samba-enredo para o concurso da Mocidade Louca. Seu discurso, publicado na íntegra, trazia os versos:

... “À luz do microscópio a célula do homem.
O começo, o milagre da reprodução.
As causas pelas quais os males os consomem.
As medidas buscando a sua prevenção.

O verme traiçoeiro, o vírus que maltrata,
na lente a bactéria morta e colorida.
O veneno que cura, o remédio que mata.
As fórmulas, os meios de alongar a vida” …

Antônio Roberto Fernandes formou-se médico, mas jamais exerceu a medicina nos moldes tradicionais. Nunca desejou vestir jaleco nem atender em consultório ou hospital. Sua missão era outra: curar os males da alma. Viveu como poeta e, como poeta, partiu em 20 de novembro de 2008. Deixou para seus “pacientes literários” um verdadeiro receituário do bem viver, registrado em seus muitos livros e nas expressões artísticas que produziu com a sensibilidade e generosidade de um bom doutor.
* Produtor cultural e acadêmico da ACL.

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