Há vagas
Ronaldo Junior
Fonte: Pixabay.
Ela fez a curva logo depois de descer a ponte. Através das décadas, o rio ainda se mantém a dividir a cidade em metades desiguais. Logo na descida, a igreja resiste – concreto e história – a narrar o povoamento nascido ao seu redor.
 
A atual situação desse espaço de terra teve início, eu bem lembro, com um visionário que alegava não compreender a função daquele tanto de prédio velho e inútil para a cidade. Esse terreno dá um estacionamento dos bons, garantia o homem à frente do seu tempo.
 
Espaço apropriado pela propriedade privada que se sobrepõe à memória pública. Muito eu posso relatar sobre o que vi, mas resolvi me ater à mulher que veio do outro lado do rio.
 
Mais adiante, na avenida principal, ela se deparou com um vazio que toma conta dos cantos: o que outrora historiava as esquinas agora é escampado sem chão. Nem os prédios mais robustos resistiram à inovação. A alegação era que o centro comercial estava à míngua porque as pessoas não tinham onde estacionar, mas ninguém percebia um sutil movimento: as pessoas preferem não ter que sair de casa, já que podem encontrar tudo num aplicativo.
 
A percepção disso, no entanto, chegou tarde: as construções já tinham sido demolidas – ou espontaneamente incendiadas - para dar lugar a modelos de negócio em espaço aberto, sem custos estruturais e com máxima automatização, nada que pudesse resolver a penúria do centro que recebia milhares de pessoas no início do século XXI.
 
Agora, raras são as pessoas por aqui. Ela, por exemplo, não viu um único passante a caminhar sob o duplo sol que invadia o céu refletido nas calçadas cinzas. Sem árvores, sem prédios, tudo cimentado para contar a história do que um dia nunca mais, dando espaço a um futuro movido pelo lucro em detrimento do passado.
 
Em tempos digitais, nada se faz de perto: não há comércio, agências bancárias ou escritórios nesses arredores. Nem teatros e templos foram poupados, restando apenas uma construção para cada necessidade presencial remanescente – o mínimo de contato humano possível.
 
As esquinas são inexplicáveis dobras no vazio a contrastar com os bairros distantes, por onde ainda perambulam pessoas. Aqui, porém, o antigo comércio deu lugar a um projeto de tudo abaixo para causar renovação, quase não poupando a igreja central. Shopping garagem, disseram que ficaria incrível no lugar. Sorte que o bispo embargou e conseguiu preservar a igreja – agora ilhada por estacionamentos.
 
A mulher – assim mesmo, inominada – manobrou o carro em uma das centenas de vagas ladeadas pelo centro histórico que se mantém nas placas turísticas obrigatoriamente colocadas. Isso porque a prefeitura certo dia decretou: artigo primeiro, cada estabelecimento pertencente à região definida como “novo centro histórico” deve afixar em sua entrada uma placa contendo as informações do imóvel demolido; artigo segundo, este decreto entra em vigor na data de sua publicação.
 
As tantas vagas, ironicamente, costumam ficar vazias, não havendo quem queira visitar esse espaço abandonado – estacionamentado – que nada tem a oferecer. Só um ou outro galpão se mantém erguido nas distâncias para distribuir os milhares de pacotes que chegam todos os dias para os bairros.
 
Ela estava ali na única função de buscar um produto em um desses galpões de distribuição após frustradas tentativas de entrega. Na saída do estacionamento – logo do lado de fora -, ela deu uma pausa para olhar a placa que falava de um prédio em estilo eclético datado do século XIX que ficava bem ali. Notei no olhar dela que o edifício tinha algo de afetivo para trazer à tona, talvez um parentesco, um nascimento, uma lembrança não vivida. Por isso ela sempre estaciona aqui, pela lembrança de um passado demolido.
 
Apagamento em cinza demarcado - vaga por vaga – a vagar pelos esquecimentos de quem nada é por não lembrar quem um dia foi: assim é o centro que conta a história pelo ouvir dizer porque, entre o velho e o histórico, priorizou-se o agora a urgir por interesses explorativos. Há quem veja lucro na destruição da memória – talvez por falta de lembrar quem um dia nunca foi.
 
Eu a acompanhei a cada curva espreitando pelas ruínas impalpáveis do que um dia chegou a ser mais que mera placa contando história. Notei a lágrima seca em sua bochecha quando voltou e releu a lápide de um edifício importante para ela. Inexplicável sensação de se identificar sem nada poder fazer.
 
Os antigos ainda me invocam enquanto lenda de um ser que vaga pelos descampados a estardalhar o ruído de destroços pela madrugada. Como parte das lendas que atravessam os imaginários, vago por esse vazio inumanizado pelo apagamento de seus traços e histórias. Por isso, sigo a guardar o que nem todos lembram e o que se forçam a esquecer.
 
Na derrubada aleatória do que se considera velho, a novidade pode ser apenas uma vaga (lembrança?) que não se deseja ocupar.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Ronaldo Junior

    [email protected]

    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.