O tempo que passa
11/11/2020 | 23h20
O tempo que passa
Cândida Albernaz
A menina estava sentada na beirada da cama, os pés balançando no ar enquanto as mãos para trás apoiavam o corpo. Observava o movimento da mãe preparando-se para sair.
Os olhos curiosos seguiam cada gesto parecendo querer para si a novidade do mundo adulto. Elza, a mãe, virou-se e perguntou à filha se queria passar batom. O brilho que iluminou o rostinho foi seguido de um sim cheio de felicidade. Abriu bem a boca, tornando o ato quase impossível de ser feito sem borrar. Pediu para ver e a mãe, pegando-a no colo, levou até o espelho do banheiro.
- Estou igual a você, não é mamãe?
- Mais linda, filha. Muito mais linda.
Sorriu orgulhosa imaginando-se mulher.
- Agora volte para lá, porque preciso terminar de me arrumar.
- Mãe, você guarda esse vestido para eu usar quando crescer?
- Claro, amor. Tudo que tenho será seu.
Recordava-se desse dia como se estivesse acontecendo agora. O vestido não existia mais. Nada era como naquela época.
Estava atrasada, precisava ajeitar a casa antes de sair. Sua funcionária não apareceu e para variar, não avisou que faltaria.
Deixou o filho na escola depois de preparar o café para eles e o marido, que também já saíra.
A roupa suja, colocou na área de serviço; a louça, havia lavado, e as camas, feitas. Não gostava de bagunça ou sujeira. Tinha um prazer enorme em ver sua casa em ordem e cheirosa. O marido costumava mexer com ela sobre sua mania de limpeza e organização. Ao contrário da mãe, que nunca se preocupava muito. Se a empregada não fosse trabalhar, ficava tudo do mesmo jeito até que ela resolvesse voltar. Dizia que não fora feita para isso. Serviços domésticos a entediavam e quebravam suas unhas. Sua mãe tinha um humor que a divertia. Ou irritava.
Muitas vezes ela mesma arrumava a casa e quando pegava a vassoura para varrer, Elza ria, dizendo que era muito bom ter uma filhinha que cuidava de tudo.
Olhou o relógio e viu que ainda tinha algum tempo. Resolveu fazer uma macarronada para o almoço, era mais rápido e aproveitaria a carne assada que sobrara do dia anterior. Quando o filho e o marido chegassem, apenas esquentaria a comida.
Lembrou novamente da mãe que nunca aprendeu a cozinhar.
- Já pensou, eu com manchas de queimaduras nos braços e mãos? Deus me livre, porque minha pele é muito clara. E depois, se fizer o serviço de Laura ela fica sem utilidade nessa casa, e, se não precisarmos mais dela, coitadinha, vai viver de quê?
E ria, sua mãe estava sempre rindo. Ria de si mesma e de tudo o que ocorria à sua volta.
Só a vira zangada e triste uma vez. Quando descobriu que o marido estava saindo com outra mulher.
Chegando do colégio, encontrou a mãe trancada no quarto, de camisola, o cabelo desfeito e chorando. Perguntou o que havia acontecido. E apesar dos seus dez anos, Elza contou com detalhes o que descobrira. Foi a vizinha quem falou para ela. O pai era um safado, arranjara uma vagabunda, que, claro, só devia estar interessada no dinheiro dele. Os dois estavam se divertindo bem debaixo dos seus olhos.
- Pensa que vai ficar assim? Vou quebrar a cara deles. Ou matar.
Abraçou a mãe e esta pediu que a socorresse pensando no que fazer, porque amava aquele desgraçado e não permitiria que uma qualquer se metesse na vida dos dois. Não tinha idade suficiente para ajudar e mesmo que imaginasse algo, não teria tempo para expor. Elza teve uma ideia, levantou da cama e vestiu-se para matar, como ela mesma informou. Avisou que ia sair, mas não demoraria.
A mãe estava linda quando passou pela sala e fechou a porta. Duas semanas depois ouviu Elza conversando com uma amiga.
- Segui meu marido e descobri onde se encontravam. Esperei ele sair e toquei a campainha. Sangue frio, minha cara, porque nessas horas é preciso. Quando aquelazinha abriu, vi o sorriso estúpido. Já entrei enfiando a mão na cara dela. Bati muito. Uma magrela baixinha que não aguentava um tapa. Dei vários. E avisei: última vez que encosta essa mão nojenta no meu marido. Fique sabendo que se houver próxima, vai ser muito, mas muito pior.
Sei não amiga, mas acho que ele acabou com as visitinhas que fazia. Chega cedo à casa, me faz um excesso de carinho, e fui convidada para uma segunda lua de mel. E ria...
* * *
Pegou as chaves do carro e saiu. Parou em frente ao portão da clínica. Verificou se as frutas e o bolo estavam direitinho dentro da bolsa. Ela sempre gostou de bolos caseiros. As enfermeiras já a conheciam.
Procurou na sala a poltrona onde a mãe a esperava. Abaixou ao lado, e deu um beijo em sua testa. Acariciou o rosto enrugado e tirou uma fatia do bolo. Os olhos parados não a reconheciam, mas assim que sentiu o sabor do doce na boca, Elza sorriu.
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olhar perdido
15/10/2020 | 00h09
Olhar perdido
Cândida Albernaz
- Como está meu tio?
- Vai ficar bem apesar da idade. Setenta e dois anos, não é? Ele parece forte.
A garota que veio com vocês precisa ser operada. O caso dela é delicado.
- Coitada da Alzira. Estava no carona e foi o lado em que o carro bateu. A vida não tem sido fácil pra ela.
- Preciso de alguns dados. Você, o que é da garota?
- Dela, nada.
- Sabe pelo menos o nome completo e a idade?
- Alzira da Silva. Dezoito anos.
- Vocês estavam indo...
- Pra casa do meu tio. Eu ia passar a noite lá. Fomos a Casemiro comprar boi. Eu trabalho com ele na fazenda. O tio tem umas terras perto de São Fidélis. Não está mal de vida, não.
- E a menina, é sobrinha também?
- Não senhora. Que sobrinha, que nada. É mulher dele.
- Sei.
- Eles vivem juntos há três anos.
- ...
- Acha que é muito jovem, né? Que nada. Já está ficando velha pro gosto do tio. Ele nunca fica com elas depois que fazem vinte e três. Mania, sei lá.
- Como se conheceram?
- Como todas as outras. Ele foi casado umas dez vezes, mais ou menos.
A primeira, que era irmã do meu pai, casou com ele quando tinha quinze anos. Morreu aos vinte e cinco no parto. Desde aquela época, não vejo meu tio sozinho.
Mas os casamentos dele não duram muito, não.
- Quantos filhos ele tem?
- Dois, que foi com minha tia. As outras ele não deixa engravidar. Diz que não gosta de mulher buchuda, fica feia.
- Mas Alzira estava grávida.
- Então ela escondeu, porque se o tio descobre, a criança não vinga.
- Perdeu o bebê. Estava com quatro meses.
- Bem que hoje vi quando ele reclamou que ela estava comendo muito e ficando gorda.
- Ele mandaria tirar?
- Claro. Tem um lugar onde o tio leva as garotas. Diz que se elas têm filhos, além da trabalheira, param de ter tempo pra cuidar dele. Fala também que o corpo deixa de ser o mesmo.
- Onde moram os pais de Alzira?
- Numa roça perto daqui. São pobres demais. O pai está desempregado faz tempo. Só a mãe dela é quem trabalha. Cinco filhos, doutora.
- Então seu tio se ofereceu para cuidar deles.
- Isso mesmo. A senhora já conhece a história, né?
Botou os olhos na menina e disse que queria pra ele. Estava casado com outra na época. Mandou a garota de volta pra casa, que nisso ele faz questão: não fica com duas ao mesmo tempo. Depois saiu atrás de convencer os pais de Alzira.
- E a que estava com ele não reclamou? Vai embora e pronto?
- Não é bem assim. Ele continua cuidando dela. Manda dinheiro todo mês. Não é muito, mas também não passa fome. Sempre faz desse jeito.
A família das meninas acaba ficando amiga dele, porque o tio não é de cuspir no prato que comeu.
- Você não está sentindo nada, não é mesmo? Todos os exames feitos deram bons resultados. É só ficar em observação por algumas horas. Amanhã recebe alta.
- Doutora?
- Sim?
- Se meu tio sabe que Alzira mentiu, não fica mais com ela. Tenho pena. De todas as meninas com quem ele amigou, Alzira é a mais triste. Vive pelos cantos com o olhar bem longe.
- Não posso esconder.
- Se ele manda ela de volta com raiva, não vai querer ajudar. E o tempo que ela levou casada pra garantir o futuro da família?
- Vou ver o que posso fazer.
- Faltam poucos anos pra ele dispensar ela.
- Vamos ver.
- Doutora?
- ...
- Meu tio não pode ter mais filho. Um probleminha que teve.
- Mas Alzira estava grávida. Tem certeza?
- Meu, doutora. O bebê devia ser meu. A bobona não contou nada.
- Você e ela...
- Pois é, se meu tio descobre, bota nós dois pra correr ou coisa pior. Dizem que mandou matar um que se engraçou com uma das meninas dele.
- ...
- Ela tem um olhar tão perdido, a gente vivia conversando, daí... Doutora, ele vai desgraçar com nossa vida.
 
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e-mail
17/09/2020 | 21h04
E-mails
Cândida Albernaz
Liguei para você, não atendeu. Resolvi mandar este e-mail e espero que leia.
Quando cheguei a casa depois da viagem que fiz a São Paulo, achei seu bilhete em cima da mesa. “Não me procure por enquanto. Preciso pensar”.
Tentei respeitar seu pedido mesmo sem compreender, mas se passou uma semana e continuo não entendendo o porquê. Viajei a trabalho e nos falamos todos os dias. Não me avisou sobre suas intenções. Quero vê-la. Preciso entender. Beijos de “seu amor”.
* * *
Não pretendo falar com você tão cedo. Nem desejo ouvir sua voz. Não há problemas em que você escreva e eu leia e vice versa.
Se não percebeu minhas intenções, como diz, foi porque não quis. Afirmei várias vezes que não suportaria mais o que estava acontecendo. Suas viagens mais frequentes e seu humor cada vez pior.
* * *
Acho ridículo você se recusar a falar comigo pessoalmente ou por telefone, mas se quer deste jeito...
Meu humor em casa não era dos melhores, porque sempre que eu chegava você estava zangada ou enfiada na sala vendo televisão e mal me cumprimentava. Eu tinha apenas uma reação aos seus modos comigo.
Quanto às viagens, sempre fiz isso, desde que me conheceu. É uma das exigências do emprego e você sabe disso.
Precisamos nos falar. Não nos vemos há duas semanas. Beijos do ainda “seu amor”.
* * *
Sei que seu emprego exige que viaje. Mas não havia necessidade de que no último ano, você tivesse companhia. Tentei ir com você algumas vezes e não deixou. Descobri o motivo. Não adianta negar. Numa delas fui até o hotel em que estava hospedado e vi quando saíram juntos.
Não quero escrever sobre isso. Faz-me mal.
Se estava zangada ou assistindo a algum programa na televisão quando você chegava, era porque não sabia o que falar sem me magoar ainda mais. Senti urgência em me isolar porque não parava de pensar. Você sabe melhor do que eu sobre o que aconteceu realmente.
E não se considere mais “meu”.
* * *
Não seja boba. Passei o dia inteiro ontem ligando para você. No trabalho ninguém diz onde está. Fui ver sua mãe e ela também não sabe. Quero conversar. Não durmo mais e nem me concentro em nada. Fico o dia inteiro em frente a essa droga de computador esperando notícias suas.
Aquela mulher que viu era uma colega de trabalho. Talvez não a conheça, mas não tenho nada com ela. Só precisamos viajar juntos daquela vez.
Amo você, deixe que explique. Sinto saudades. E continuo assinando como “seu”.
* * *
Não perturbe minha mãe porque ela já tem problemas demais e não precisa que ninguém a preocupe.
Pedi licença por uns dias e não sabem mesmo onde estou.
Se você não dorme, fico feliz, porque há muito tempo não consigo dormir direito. É a sua vez. Tinha que chegar.
Quanto à sua colega, eu também tenho colegas de trabalho, mas não costumo andar na rua abraçada com eles e muito menos beijá-los na boca.
Quando esteve em São Paulo nesta semana, voltei lá e vi vocês dois. Ninguém me contou e pode ter certeza de que o que sofri foi de bom tamanho.
Você não me ama como diz e se sente saudades, vá se distrair do jeito a que está acostumado.
* * *
Vamos conversar. Não sei o que viu, mas seja lá o que for, necessito que me dê o direito de defesa. Estamos juntos há quatro anos. Não pode terminar assim. Há um mês que não a vejo. Sinto sua falta.
Querendo ou não, você terá que voltar. Sua licença terminará e não vai poder continuar fugindo.
Escute-me e tenho certeza de que vai compreender. Se queria que eu sofresse, conseguiu. Mal como ou durmo. Não consigo sair de casa com a esperança de que você apareça a qualquer momento: se me vir, vai entender o que digo. Por favor.
* * *
É claro que precisarei voltar. O mínimo que espero é que tenha respeito e não chegue perto de mim.
Não há explicação. Não desculpo o que fez. Não o quero mais.
Não pretendo retornar ao apartamento em que você mora. Pedi a uma amiga que passe aí e pegue o que é meu.
Não queria que sofresse. Ainda quero que sofra, e muito.
Só para que saiba, ficarei longe por mais algum tempo. Tenho direito a férias atrasadas e resolvi pegar agora. Também troquei o número do celular. Não preciso ouvir o que tem a dizer, meus olhos já viram.
Se não dorme ou não come, ou se desespera, tenha certeza: é um alívio para mim. Também passei por isso.
Daquela que nunca mais será sua.
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obituários
10/09/2020 | 23h46
Obituários
Cândida Albernaz
O peso nas pernas a impedia de andar com rapidez. Os anos passaram e quando percebeu, já quase não saía. As notícias de fora do seu apartamento, só sabia através do jornal ou da televisão. Aliás, era dali que conseguia saber sobre seus amigos do passado. Adquirira o hábito de ler os obituários e por inúmeras vezes chorou perdas antigas.
O filho Eugênio, que morava com ela, trabalhava durante todo o dia. Saía cedo e só retornava às sete horas da noite. Procurava o que fazer em casa, mas até mesmo costurar, um antigo prazer, se tornara difícil. A visão não ajudava.
Outro dia, sua irmã Zulmira, que morava em Campinas, veio com o filho ao Rio e passou o dia em sua casa. No final, não conseguiu dizer se foi bom ou não. A irmã, que tinha dois netos (e isto causou nela enorme inveja: dois netos!) reclamava de tudo: do filho que não tinha paciência, da nora que apesar de ser uma boa pessoa falava demais, das dores no corpo, da comida que não podia comer...
Fazia pelo menos três anos que não se viam, moravam longe e dependiam dos outros. Soube por Zulmira, sobre um primo delas. Ficara viúvo há dois meses. Ele e a mulher viveram juntos por sessenta e cinco anos. A irmã achava que ele agora não viveria muito mais, morreria de paixão. Por dentro, ela achou até graça. Sabia que ele deveria estar com noventa e seis anos. O que Zulmira queria?
Ela tinha uma forma de ver a vida que o tempo não conseguira modificar. Ria de tudo, via graça nos menores detalhes e tinha uma capacidade de transformar em piada até mesmo os seus problemas. A única coisa que realmente a entristecia era não ter tido netos, para que agora pudesse acompanhar de perto novas vidas que a fariam reviver a sua e de seu marido. Este, um homem de gênio difícil, explosivo, mas que com jeitinho, fazia quase tudo o que ela queria.
Sentiu muito quando ele se foi, mas no final, em suas orações pedia para que Nosso Senhor o chamasse para junto dele. Não falava, andava ou fazia qualquer movimento. O tumor no cérebro levou-o em oito meses. Foi uma época dura, ela e o filho revezavam-se nos cuidados e apesar do marido nunca ter aceitado o filho que tinha, e os dois estarem sempre brigando, jamais viu tanto amor de um filho por um pai. Pena não se darem bem em vida. Quem sabe um dia se reencontram e se perdoam pelo tanto de ruim que disseram entre si? Gostava de pensar assim.
Eugênio vive insistindo para que vá ao médico. Não quer e sabe que ele também não tem tempo de levá-la. Já se conhece bem, e o máximo que sente são estas tonteiras quando baixa a pressão. Toma um remedinho que sempre tem em casa, deita por algumas horas e pronto. Está boa de novo. O dia em que for embora, espera que seja como um passarinho e não em hospital se entupindo de remédio e coisas piores.
Hoje ainda não olhou o jornal. Foi até a mesa de cabeceira e pegou sua pequena lupa, para enxergar melhor. Não gostava de óculos.
Abriu direto na página de obituários. Começou a ler cada um. Alguns tinham dizeres bem bonitos. Havia um nome conhecido entre eles: Carlos José de Almeida. Seu único namorado além do marido. Tinha boas recordações. Bailes e escapadas no jardim da praça perto de casa. Esteve apaixonada por ele durante muito tempo, diferente do amor maduro que sentira pelo marido. Na época em que terminaram ainda se gostavam, mas era orgulhosa e não quis reatar quando Carlos José dias mais tarde pediu de forma insistente. Lembrava-se como se fosse ontem dos olhos cor de mel fitando-a.
Uma lágrima escorreu em seu rosto. Fechou o jornal e ligou a televisão. Estava passando um programa humorístico de que gostava. Tentaria dar boas risadas enquanto esperava o filho chegar para que jantassem juntos.
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minha escolha
07/09/2020 | 00h42
Minha escolha
Cândida Albernaz
Com o frio que está fazendo hoje, não conseguirei dormir. Esse cobertor é fino e o papelão é pouco.
Andei o dia inteiro. É o que mais gosto de fazer. Claro que vem depois de falar enquanto ando. Falo muito, tudo o que penso ou pensei um dia, coloco para fora.
Às vezes percebo um e outro me olhando, mas na maioria das vezes, me concentro tanto no que não penso que pareço não ter nada ou ninguém em volta.
Quando fui atropelado me levaram para o hospital, foi necessário engessar o braço e passei a noite lá. Bati com a cabeça também. A vantagem de quando isso acontece é um dia inteiro com roupas limpas, comida quase quente e travesseiro. É a única coisa de que sinto falta: travesseiro! Mas não dá para carregar um deles para cima e para baixo. Na manhã seguinte recebi alta bem cedo. Precisavam do leito e eu da rua para respirar novamente.
Não sou sozinho como muitos pensam. Tenho um filho, Leandro, e tive uma mulher. De vez em quando a mente permite recordá-los. Vêm como lampejos e fogem com rapidez. Melhor que seja assim. A memória pode nos trazer muito sofrimento. Não gosto de sofrer e escolhi não sentir.
Leandro me encontrou de novo. É sempre a mesma coisa. Quer me levar para casa, cuidar do que como, dar roupas passadas e lembrar que sou avô. Vez ou outra vou com ele e fico por uma semana. Ou duas. Depois saio em busca da minha liberdade e do pensar em nada pensando em tudo ao mesmo tempo.
Gosto de cantar também e quando estou feliz, danço. Pessoas se reúnem olhando, riem das piruetas que faço ou do som da minha voz. Alguns jogam moedas e se não passar nenhum daqueles garotos que não respeitam ninguém, consigo alguns trocados para um almoço decente.
Quando minha mulher se foi com um sujeito que se dizia amigo, nunca mais tive um, pensei que ficaria louco. Pensei tanto nisso, que fiquei e foi a melhor coisa que fiz por mim.
Na verdade, ela dizia que eu estava ficando maluco há algum tempo. Deixava-a falar e vivia a vida do trabalho para casa. Não fazia outra coisa. A não ser beber com alguns amigos nos fins de semana. Não percebi que um deles sempre chegava mais tarde. Sempre de banho tomado, sempre com um sorriso filho da puta na cara e sempre sem me encarar.
Levou minha mulher com ele um dia. Disseram para eu seguir em frente porque ela não valia nada. Eu é que sei se ela valia ou não.
Senti a cabeça começar a doer. Não posso pensar demais que logo vem essa dor. A parte boa é que minha memória é fraca e do jeito que vem, o que vivi vai embora. Foi!
Estou com vontade de cantar e é o que eu vou fazer. Gosto de ser diferente de vez em quando porque a vida das pessoas normais é muito chata. E machuca.
Hoje resolvi dormir num lugar diferente. Ainda bem que não arranjei confusão com ninguém. Sou forte e quando é necessário brigo pelo canto onde quero dormir e tiro quem estiver no lugar na base da porrada.
Quando estou na casa de Leandro, não gosto de incomodar. Fico quieto, obedeço e procuro não sujar ou quebrar nada. Meu neto fica olhando, mas não chega perto. Prefiro desse jeito porque já tenho recordações demais para atrapalhar. Fugiu mais uma vez.
Olho o céu e noto que não vai chover. O dia amanhã vai ser bom e a caminhada longa. Só não perguntem para onde vou.
Para algum lugar e é nisso que gosto de pensar.
Acho que lá, vou rir, não, vou gargalhar. Talvez dêem algumas moedas.
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alôôô...
26/08/2020 | 23h34
Alôôô...
Cândida Albernaz
- Alô.
- Oi.
- Carminha?
- Eu.
- É a Ju. Liguei porque preciso muito falar com você.
- Oi, Ju. Nossa! Há quanto tempo não nos falamos.
- Pois é, estou ligando porque preciso...
- Menina, soube sobre Raquel? Separou. Está andando para cima e para baixo com um garotão. Vai acabar ganhando outro chifre, igual ao que o marido colocou nela.
- Poxa!
- Pelo menos está aproveitando. Falaram que é um gato. Mas me conta sobre você, o que anda fazendo?
- Eu...
- Soube que seu irmão esteve doente. Pneumonia, não foi? Mas graças a Deus ele já está bom, não é? Contaram que ficou internado por mais de dez dias. Desculpe não ter feito uma visita, você sabe como é. Os dias correm e quando espantamos não se passaram apenas dez, mas trinta dias. Tem visto Sônia?
- Ontem ela esteve aqui em casa. Eu queria...
- Menina, ela está ótima. Fez lipo, colocou silicone, abdômen e nem sei mais o que. Viu os peitos dela? Per-fei-tos. Quero igual. Brincadeirinha, não tenho dinheiro para pagar. Porque se tivesse... ficaria com tudo em cima.
- Carminha?
- Fala garota. Estou com saudade de você, do nosso grupo. Afastei-me demais. Trabalho! Trabalho como uma louca e nem assim sobra um dinheirinho. Sou consumista, reconheço. Lembra daquela bolsa carésima que vimos na última vez em que saímos?, tivequecomprar! Fiquei sem dormir pensando nela. Acredita? Claro que acredita. Você me conhece mais que as outras. E sempre teve paciência comigo. Por isso é a melhor e mais querida das minhas amigas.
- Obrigada, mas quero...
- Sei que às vezes falo demais. É um defeitinho de fábrica. Quando começo, é difícil parar. Você está com Duda ainda, ou já mandou passear? Desculpe a franqueza, mas que cara folgado você foi arrumar. Não sei como aguentou esse sujeito por tanto tempo. Fiquei sabendo que terminaram. Sofreu amiga? Não, aposto que não. Porque ele não merecia nada de você. Deu em cima de Gabi naquela festa, lembra? Eu mostrei a você. Ainda bem que ela é sua amiga e não quis conversa com ele.
- Carminha?
- Desembucha mulher. Fica repetindo meu nome, mas não diz nada. Só mais uma coisa. Duda foi demitido realmente? Disseram-me que ele perdeu uma conta de publicidade importante e que a firma não perdoou. Foi posto na rua. Também pudera. O cara é fraco mesmo, mas até que é bonitinho, não? Quer dizer, muito lindo. Usou enquanto pôde heim amiga? Só por aquele peito e aquela barriga sarada... Acho que nem eu resistiria. Mas quando um homem desses me daria alguma chance? Deixa para lá que tenho meus arranjos e não posso reclamar. De barriga vazia não fico. Mas você até agora não disse porquê me ligou. Sempre a mesma, falando pouco, sendo paciente com todos e prestativa. Sabia que o som da sua voz me acalma? Sempre foi assim.
- Carminha? Pela última vez...
- Fala mulher.
- Vou me casar e liguei para convidar você para ser minha madrinha...
- Poxa, amiga. Nem conheço seu noivo. Faz tempo mesmo que não nos vemos.
- Duda, Carminha. O meu noivo é Duda.
- Mas...
- E não me importa sua opinião sobre ele. Só não sei se vai aceitar, já que não gosta dele...
- Como assim, Ju? Sempre adorei Duda. As pessoas é que falam demais. Estava apenas repetindo.
- Sei.
- Não se zangue amiga. Duda é tudo de bom e você vai ser muito feliz. Eu aceito. Sabe há quanto tempo não sou madrinha de casamento?
- ...
- Nunca fui. É, acho que nunca. Obrigada amiga. Amo você, amo Duda e vou amar cada um dos quatro filhos que tiverem.
- Quatro?
- Brincadeira, é claro. Só uma pergunta. Ju, você não esta grávida, está? Pode confiar em mim.
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somos iguais
20/08/2020 | 20h34
Somos iguais?
Cândida Albernaz
Sentada na varanda, a bacia plástica cheia de roupas entre as pernas. Com as mãos na água puxava peça por peça esfregando vigorosamente.
Do cabelo preso num coque com um grampo, fios rebeldes se soltavam. As costas doíam, mas não adiantava reclamar.
Cresceu naquele lugar, apaixonou-se, casou-se e continuava ali. Nunca esperou muito mais que isso.
A filha sentada na calçada comia um pedaço de pão e segurava a caneca de café. O nariz escorria e de vez em quando um acesso de tosse fazia com que ela se levantasse e com olhos preocupados segurava a menina no colo.
Tentara levar ao médico no dia anterior, mas não conseguiu que fossem atendidas.
A garota tossiu a noite inteira, a respiração dela ficava cada vez mais difícil.
Quando terminasse de lavar a roupa, levaria a menina ao posto de saúde. Hoje só sairia de lá se fosse consultada, resolvera.
O marido não estava em casa, foi jogar sinuca com outros, que como ele, estavam desempregados.
Há dois meses sem trabalho e o esforço que fazia para conseguir um serviço era pouco. Não conseguia entender aquele homem ainda jovem, com saúde, ser tão irresponsável.
Ela trabalhava numa casa de família e quando tinha com quem deixar a filha, arrumava o que fazer aos domingos e feriados para ganhar um extra.
Quando reclamava com ele, dizia que se esforçaria mais, mas que emprego estava difícil. E depois não era homem de aceitar fazer qualquer coisa, tinha uma profissão:
- Sou pintor e pintar é o que sei fazer.
No último emprego, na fase de acabamento do prédio, discutiu com o chefe de obras. O outro foi dizer que o serviço estava mal feito e queria que pintasse um dos apartamentos mais uma vez. Durante a discussão, enfiou a mão na cara do tal, e quando conseguiram separar os dois, foi demitido.
Ultimamente ela vinha sentindo-se mais cansada, e não era cansaço no corpo, era dentro dela mesma.
Deu para pensar na época em que era garota, morando numa daquelas casas sem reboco, onde, quando chovia, ficava alagada. Recordava-se da mãe, sempre com um lenço na cabeça, lavando roupa para fora, cuidando dos quatro filhos e envelhecida. Não se lembrava de algum dia sua mãe ter sido jovem.
Quando conheceu Jonas, sabia que sua vida não seria muito diferente da que a mãe levava, mas havia o amor, e o amor enfeita tudo.
Com a filha no colo, parou em frente ao pequeno espelho do banheiro, parecia ver sua mãe refletida nele. Cada dia se assemelhava mais a ela. A ruga em volta dos olhos, o sorriso cansado, só faltava o lenço para esconder o cabelo mal cuidado.
A tosse da filha fez com que voltasse a realidade. Deu um banho na menina, vestiu-a e deixou-a sentada na cama enquanto também se lavava.
Na saída, olhou para o bar onde o marido estava e de longe fez sinal para que soubesse onde levava a menina. Ele veio até as duas:
- Quer ajuda?
- Não precisa.
-Está bem, quando chegar passe aqui e me diz o que o médico falou.
O beijo rápido na boca estava longe de ser o que precisava. Talvez um abraço, ou quem sabe, só um carinho no rosto; melhor ainda, sem perguntar nada: vou com você.
Caminhou até o ponto de ônibus.
A filha dormira um pouco. Olhou seu rostinho e não pôde deixar de pensar que um dia ela também seria mãe, amaria algum Jonas e se pareceria ao olhar no espelho, com a avó que nem chegou a conhecer.
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sua mente dentro da minha
05/08/2020 | 22h20
Sua mente dentro da minha
Cândida Albernaz
 
Ele está me esperando. Chegou cedo, não sei o porquê. Ou melhor, é claro que sei. Vive tentando me pegar em alguma atitude que jamais cometi.
Olha com desconfiança enquanto arrumo as frutas que comprei, no pote em cima da mesa da cozinha.
Com os braços cruzados, fixa em mim olhos de acusação. Tento fingir que não percebo aquele fogo que parece deixar rastros no meu corpo. Sinto-me queimar e uma culpa pelo que não fiz começa a me consumir.
Mesmo que tente, não consigo transmitir firmeza ao falar, sinto insegurança e com medo de sua imaginação.
Em alguns momentos sua loucura parece ser minha, fazendo com que duvide de mim mesma.
Começo a preparar o jantar e comento que o esperava mais tarde. “Saí para comprar frutas. Trouxe maçã verde, que você adora”.
Aproxima-se e me beija a testa. Beijo com respeito, que eu detesto. Ele sabe. Avisa que vai tomar um banho e pede os jornais. “... não tive tempo de ler hoje de manhã”.
De olhos baixos, vou até a mesinha onde os coloquei. Entrego a ele.
**
 
Ela não firma o olhar no meu. Onde esteve realmente? Antes de chegar, verifiquei os armários e a geladeira. Tem abacaxi e pêssegos. Para que foi comprar mais frutas?
Talvez seja uma desculpa para encontrar alguém.
Cheguei mais cedo e ela não contava com isso. Desta vez não fiz de propósito, apenas eu e meu sócio resolvemos almoçar juntos, comemorar as boas vendas e decidimos não voltar para a corretora.
Noto que ela treme quando faço perguntas. Está insegura. Tenho certeza de que fez algo que não devia. Acho que vou colocar alguém atrás dela. Já fiz isso outras vezes. Deu em nada.
**
 
Foi tomar banho. É um alívio sair debaixo de seus olhos.
Sempre consegue fazer com que me sinta culpada. Não sei de quê.
Não tive tempo de preparar o jantar. Vai reclamar.
Adoro cozinhar. Antes de sair, a cozinheira deixou tudo adiantado, mas sempre preparo algo diferente para nós dois. Ele gosta.
Vou ao quarto trocar de roupa, colocar alguma coisa mais confortável.
Ele já está na sala lendo os jornais.
**
 
Depois que ela colocar o vestido no cesto de roupas, pego e verifico se tem algum cheiro diferente.
Hoje não vou falar sobre a demora do jantar. Quero ver até onde vai. Vou dar corda por uns dias, ficar mansinho.
Mais cedo ou mais tarde vai se trair.
**
 
Jantamos em silêncio. No que será que ele está pensando?
Durante a sobremesa, começo a falar sobre o fim de semana. “Seu irmão convidou para irmos à praia com ele. O que acha querido?”.
Diz que até amanhã resolve. Combinou com o sócio uma reunião no sábado de manhã, vão discutir sobre um novo prédio que foi lançado no mercado.
Fico triste. Na casa do irmão ele se solta, parece mais tranquilo. Quando estamos lá, volta a ser o homem com quem casei.
**
 
 
Jantamos em silêncio. No que será que ela está pensando?
Pede para irmos à praia. Vou desmarcar a reunião com meu sócio, mas só respondo a ela amanhã. Não quero que tenha tempo para fazer planos.
Na casa do meu irmão fico à vontade. Nunca tem ninguém de que não goste. Foi bom este convite, estou precisando descansar.
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No quarto, aproximo e beijo seu pescoço. Abraça-me com força. Sinto a pressão do seu corpo quando me cobre, noto o coração disparando, tenho um amor forte por ele. Pena as dúvidas que tem. Pena a mágoa que deixa em mim.
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No quarto ela se aproxima e beija meu pescoço. Sei o que quer. O mesmo que eu.
Seu corpo quente embaixo do meu faz o coração acelerar, sinto que a amo mais do que tudo. Pena as dúvidas que tenho.
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tudo pode ser melhor do que parece
30/07/2020 | 00h04
Tudo pode ser melhor do que parece
Cândida Albernaz
No chão de terra, as bolinhas de vidro colorido rolavam de um lado para o outro obedecendo ao toque dos dedos.
A lata de Bruno estava cheia. Costumava ganhar sempre e nem assim os outros meninos desistiam de enfrentá-lo. Era o melhor deles. Comprou as primeiras bolas de gude no armazém de seu João. Depois de um tempo ganhou tantas, que algumas vezes dava ao Tonico (mas que não contasse aos outros!), já que ele não podia comprar.
Os pais de Tonico morreram quando ele tinha três anos e os avós maternos cuidaram dele. Muitas vezes não tinha o que comer, então o chamava num canto e dava metade do seu pão com salame para ele.
Costumava também protegê-lo dos outros garotos, pois ele mancava e algumas vezes os meninos o perseguiam colocando apelidos que o magoavam.
Com tudo isso, era Deus no céu e ele na terra para o Tonico.
Já o pegara chorando por mais de uma vez, mas na última, proibira que ele chorasse de novo. Não por motivo tão bobo.
- Enfrente os caras. Eles só correm atrás de você porque tem medo. Se precisar, te ajudo.
Não adiantava. Era como se ele achasse que podia menos que os outros. Não era medo, era subserviência. O avô era muito humilde e sempre foi capacho do patrão. O Tonico saiu igual.
Naquela semana seria natal. Em casa, sua mãe já preparava a pequena árvore feita de galhos secos enfiados num vaso cheio de terra, com bolas vermelhas penduradas em suas pontas e alguns laços de fita em tons de verde, dourado e vermelho completavam a decoração.
Todos os anos ele e a irmã ajudavam a mãe no preparo. Era motivo de alegria.
Neste ano Tonico batera na porta quando terminavam de colocar os pares de sapatos embaixo da árvore. Ficou olhando extasiado.
- Que cara de bobo é essa, Tonico?
- Está linda!
- Parece que nunca viu uma árvore de natal antes. Deixa de ser idiota, vamos lá pra fora.
Bruno virou-se e já na rua gritou:
- Não quer ver Tula? Teve os filhotes ontem.
Tonico então disparou porta a fora em direção ao quintal.
A cachorra de pelo ralo e sem raça definida, estava deitada num canto enquanto os filhotes dormiam encostados nela. Eram três, pois um morrera.
- Queria ter um cachorro, mas meus avós implicam.
- Estes, nem pensar, pois já têm dono e vou ficar com um pra mim.
Tonico aproximou-se da cadela que rosnou baixinho. Ele sentou-se no chão:
- Estão todos agarrados na mãe. Viu como ela defende os filhos, Bruno? Mãe é assim, acho que todas.
Bruno saiu andando deixando o amigo ali, envolvido com suas ideias.
Na véspera de natal soube que Tonico estava de cama. Levara uma surra de uns garotos e caíra sobre uma das pernas torcendo-a, o que o obrigou a ficar de repouso. Foi visitá-lo. Era a primeira vez que entrava na casa dele.
Em cima do estrado com um colchonete, colocado num canto da pequena sala, ele suava e reclamava de dor. A avó do garoto ficou olhando para Bruno enquanto este se aproximava do amigo.
- E aí, cara? Pegaram você de jeito.
- Veio me zoar? Sabe que não consigo ter a mesma velocidade que eles. Eram quatro.
- Que zoar que nada. Fica bom logo porque nós dois vamos pegá-los. Vão apanhar tanto que nunca mais mexem com você.
O sorriso carregado de vaidade tomou conta do rosto de Tonico.
- Nós dois juntos?
- É claro, cara. Vou te ensinar a bater.
- Amanhã não vou poder ir à missa porque minha perna está inchada. Dessa vez não ganho nada mesmo.
- Não posso pegar os presentes que as beatas distribuem na saída da igreja. Elas sabem o nome de todos da lista e não vão me dar o seu.
- É, eu sei. Minha avó não pede, diz que presente é bobagem: “o que importa é barriga cheia. Se ainda dessem comida...”.
- Vou embora, mas antes quero te entregar uma coisa.
Saiu da sala e na porta pegou uma caixinha de papelão.
Tonico levantou o corpo para tentar ver o que era.
Bruno tirou um cachorrinho de dentro da caixa e o colocou no colo de Tonico.
Os olhos do amigo ficaram embaçados.
-Minha avó não vai deixar.
-Combinei com ela. Você pega a comida comigo todo dia e não deixa a sujeira espalhada.
As mãos pequenas acariciavam o pelo preto e branco, enquanto aproximava o cão do rosto.
-Tenho que colocar um nome nele.
Olhou em volta e viu que Bruno não estava mais ali. Não percebera que ficara muito tempo olhando para o cão no seu colo.
Um sorriso largo animou-lhe o rosto, quando recebeu uma lambida no nariz.
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o filho de Olavo
23/07/2020 | 00h24
O filho de Olavo
Cândida Albernaz
Estava cismado com as reticências de Maria Regina.
Fazia pouco tempo ela vinha se chegando como quem não quer nada. Soltava uma frase aqui ”Não sei o que há com a Terezinha...”, outra ali “Terezinha não tem aparecido na rua...”.
Ele que já a conhecia bem, não costumava dar ouvidos às fofocas que fazia, mas ela estava insistindo “coitado do Antônio, tem parecido tão triste...”.
À tarde, enquanto limpava o balcão e retirava os últimos copos que estavam sobre ele, Maria Regina entrou:
- Ué, vai fechar mais cedo?
- O movimento está fraco.
Jogou o pano que usava sobre o ombro e virou-se para a pia onde abriu a torneira e lavou pratos e copos.
- Viu Terezinha?
- Faz uns dias que não a vejo. O Antônio foi quem esteve aqui no bar outro dia.
- Eu sei porquê ela não tem aparecido. Aliás, nem aqui nem em lugar algum.
Ele agora arrumava as prateleiras de bebida e verificava a temperatura do freezer.
- Você conhece a viúva de Olavo, não?
- Claro. Todo mundo conhece todo mundo nessa cidade imensa em que moramos.
Estava sem paciência com aquela conversa. Queria sossego. O dia foi difícil e principalmente não rendeu muito.
Ela fingiu não perceber a ironia em sua voz e continuou:
- Então. A viúva andou espalhando que o segundo filho de Terezinha era de Olavo, que antes de morrer contou a ela e pediu perdão.
Ele parou o que estava fazendo. Não sabia se acreditava ou não. Antônio era seu amigo e afilhado de casamento.
- De onde você tirou esta história, Maria Regina?
- Não tirei de lugar nenhum, não senhor. É o que estão dizendo.
- Quem estão?
- Ah! Nem lembro quem contou, mas parece que é verdade. A viúva até deu uma coça nela chamando de sem-vergonha e mulher safada. Terezinha está trancada em casa com a cara inchada de apanhar. E de chorar também.
- Maria Regina, isto é sério!
- Eu sei e não sou mulher de ficar inventando coisa. Já reparou que o segundo filho deles é moreninho? Todo mundo é louro naquela casa. Na época disseram que parecia com o avô de Antônio. Sei! Se você reparar bem, é a cara de Olavo. Até a pinta do lado do nariz o garoto tem igual.
Ele ficou pensando em Antônio. Era doido pela mulher.
- Disseram que trancou Terezinha dentro do quarto. Não sai nem para comer. Você acha que ele a coloca para fora? Ou faz coisa pior?
- Chega, preciso fechar. É melhor você ir para casa.
Ela saiu andando e resmungando que não contaria mais nada a ele. Só estava querendo ouvir uma opinião.
Pensou que se tudo o que ela falou for verdade, o casal necessita de ajuda. Como faria? Antônio, homem fechado que não costumava se abrir com ninguém. Os dois eram amigos desde criança e mesmo sem falar muito, um conhecia bem o outro. Sabia também que por maior que fosse o coração de Antônio, quando a raiva explodia, ele podia assustar quem estivesse por perto.
Precisava encontrar o amigo. Resolveu primeiro passar em casa para tomar um banho e jantar enquanto decidia como faria. Mais tarde foi bater na porta de Antônio.
Demorou para que abrissem. O menino à sua frente tinha o rosto assustado. Olhou bem e reparou na pinta e no cabelo bem preto e liso. Como o de Olavo.
- Seu pai, onde está?
Não respondeu. Fitou-o como se pedisse ajuda. Afastou a porta e segurando a mão do garoto de cinco anos, pediu que o levasse até o pai.
Foram andando pelo corredor estreito e em frente ao que imaginava ser o quarto do casal, que estava fechado, pararam.
- Antônio está aí dentro?
Ele acenou com a cabeça afirmando.
- E sua mãe?
Os olhos do menino encheram-se de água.
- Está dormindo. Papai brigou com ela, gritou muito e então ela fechou os olhos.
- Como assim? Sua mãe foi dormir a que horas?
- Não sei, acho que foi ontem de manhã. Quando acordei, eles brigavam e mamãe chorava muito. Depois eles ficaram quietos e eu abri a porta. Vi papai colocando minha mãe na cama. Já estava dormindo e ele não me deixou falar com ela. Pediu para não fazer barulho e sair dali.
- Você não falou mais com Terezinha?
- Não.
- E seu pai, o que ele disse depois a você?
- Nada. Sentou na cadeira do lado da cama e está lá até agora.
Abriu a porta do quarto. Havia uma mancha escura no peito de Terezinha que continuava em volta dela sobre o lençol. Antônio, sentado na cadeira pareceu não perceber que havia mais alguém ali.
Aproximou-se dele que sem se virar disse:
- Tire-a daqui e me leve junto. Acabou.
 
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