obtuários
- Atualizado em 10/09/2020 23:46
Obituários
Cândida Albernaz
O peso nas pernas a impedia de andar com rapidez. Os anos passaram e quando percebeu, já quase não saía. As notícias de fora do seu apartamento, só sabia através do jornal ou da televisão. Aliás, era dali que conseguia saber sobre seus amigos do passado. Adquirira o hábito de ler os obituários e por inúmeras vezes chorou perdas antigas.
O filho Eugênio, que morava com ela, trabalhava durante todo o dia. Saía cedo e só retornava às sete horas da noite. Procurava o que fazer em casa, mas até mesmo costurar, um antigo prazer, se tornara difícil. A visão não ajudava.
Outro dia, sua irmã Zulmira, que morava em Campinas, veio com o filho ao Rio e passou o dia em sua casa. No final, não conseguiu dizer se foi bom ou não. A irmã, que tinha dois netos (e isto causou nela enorme inveja: dois netos!) reclamava de tudo: do filho que não tinha paciência, da nora que apesar de ser uma boa pessoa falava demais, das dores no corpo, da comida que não podia comer...
Fazia pelo menos três anos que não se viam, moravam longe e dependiam dos outros. Soube por Zulmira, sobre um primo delas. Ficara viúvo há dois meses. Ele e a mulher viveram juntos por sessenta e cinco anos. A irmã achava que ele agora não viveria muito mais, morreria de paixão. Por dentro, ela achou até graça. Sabia que ele deveria estar com noventa e seis anos. O que Zulmira queria?
Ela tinha uma forma de ver a vida que o tempo não conseguira modificar. Ria de tudo, via graça nos menores detalhes e tinha uma capacidade de transformar em piada até mesmo os seus problemas. A única coisa que realmente a entristecia era não ter tido netos, para que agora pudesse acompanhar de perto novas vidas que a fariam reviver a sua e de seu marido. Este, um homem de gênio difícil, explosivo, mas que com jeitinho, fazia quase tudo o que ela queria.
Sentiu muito quando ele se foi, mas no final, em suas orações pedia para que Nosso Senhor o chamasse para junto dele. Não falava, andava ou fazia qualquer movimento. O tumor no cérebro levou-o em oito meses. Foi uma época dura, ela e o filho revezavam-se nos cuidados e apesar do marido nunca ter aceitado o filho que tinha, e os dois estarem sempre brigando, jamais viu tanto amor de um filho por um pai. Pena não se darem bem em vida. Quem sabe um dia se reencontram e se perdoam pelo tanto de ruim que disseram entre si? Gostava de pensar assim.
Eugênio vive insistindo para que vá ao médico. Não quer e sabe que ele também não tem tempo de levá-la. Já se conhece bem, e o máximo que sente são estas tonteiras quando baixa a pressão. Toma um remedinho que sempre tem em casa, deita por algumas horas e pronto. Está boa de novo. O dia em que for embora, espera que seja como um passarinho e não em hospital se entupindo de remédio e coisas piores.
Hoje ainda não olhou o jornal. Foi até a mesa de cabeceira e pegou sua pequena lupa, para enxergar melhor. Não gostava de óculos.
Abriu direto na página de obituários. Começou a ler cada um. Alguns tinham dizeres bem bonitos. Havia um nome conhecido entre eles: Carlos José de Almeida. Seu único namorado além do marido. Tinha boas recordações. Bailes e escapadas no jardim da praça perto de casa. Esteve apaixonada por ele durante muito tempo, diferente do amor maduro que sentira pelo marido. Na época em que terminaram ainda se gostavam, mas era orgulhosa e não quis reatar quando Carlos José dias mais tarde pediu de forma insistente. Lembrava-se como se fosse ontem dos olhos cor de mel fitando-a.
Uma lágrima escorreu em seu rosto. Fechou o jornal e ligou a televisão. Estava passando um programa humorístico de que gostava. Tentaria dar boas risadas enquanto esperava o filho chegar para que jantassem juntos.

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