Arthur Soffiati: As cinco pandemias da humanidade (I)
Arthur Soffiati - Atualizado em 04/09/2020 14:07
Durante cerca de um milhão de anos, as sociedades dos hominídeos viveram da coleta, da pesca e da caça. O nomadismo era muito frequente. Essa mobilidade contribuía para escapar-se das doenças infecciosas causadas por microrganismos. Elas ocorriam, mas não eram endêmicas. Morria-se mais por acidente, ataque de animais e guerra. Com a sedentarização de algumas sociedades, a partir de dez mil anos passados, tudo mudou. A agricultura passou a produzir alimentos em parte guardados para períodos de escassez. Estocados, eles atraíam roedores que, normalmente, transportavam vírus e bactérias. Insetos picavam os animais e picavam os humanos, transmitindo-lhes doenças muitas vezes mortais.
A peste bubônica, transmitida pela bactéria “Yersinia pestis”, e outras doenças infecciosas eram muito comuns. Com a criação das primeiras civilizações e das cidades, as doenças se tornaram mais frequentes. Sua propagação se tornava mais fácil pelo sedentarismo e pela aglomeração de pessoas. As condições de higiene eram precárias. Não havia coleta e tratamento de esgoto e lixo. Daí a frequência das epidemias. Como não se conhecia os agentes das doenças e os processos de transmissão e de tratamento, normalmente as mortes provocavam reduções drásticas de população. As doenças transmissíveis eram vistas como parte integrante da vida cotidiana. Elas eram creditadas a deuses, espíritos e demônios, e não a agentes naturais e a desequilíbrios ambientais.
Inscrições em pedra, argila e pergaminho registraram, de forma nem sempre clara, a ocorrência de surtos epidêmicos na Mesopotâmica, no Egito, em Israel, na Índia, na China etc. A mais conhecida epidemia das civilizações pré-ocidentais foi a de Atenas, quase certamente um surto de peste bubônica, que matou muitos habitantes da cidade, inclusive Péricles, o grande representante da democracia da cidade-estado. Nenhuma ganhou caráter pandêmico porque as sociedades ou não tinham contato ou mantinham contatos superficiais e esporádicos. A menos que se entenda como pandemia um surto que atingisse o mundo conhecido na época.
A rigor, a primeira pandemia ocorreu no século VI d. C. e perdurou até meados do século VIII em ciclos epidêmicos. Ela recebeu o nome de Peste Justianiana por ter sido melhor registrada, sobretudo para os ocidentais, no reinado de Justianiano, imperador romano (c. 482 -565). O império estava praticamente restrito à Turquia. A doença veio da África Oriental, chegou ao Egito em 540 e se espalhou pelos portos do mar Mediterrâneo. Deles, atingiu o Império Romano do Oriente, alcançando a Europa Ocidental, o norte da África e o Império Sassânida, com centro na Pérsia e compreendendo o Iraque, parte do Paquistão, todo o Oriente Médio e parte da Turquia. Paulo Diácono, no século VIII d. C., registrou: “as cidades foram despovoadas, os campos se esvaziaram e as habitações humanas se tornaram retiros para animais selvagens.” Paralelamente, o mundo romano, ou o que restara dele, estava sob pressão de povos considerados bárbaros.
A segunda pandemia foi a conhecida Peste Negra, que atingiu a Europa em 1347-1350, vinda da Ásia Central e se alastrando pela Ásia Menor, Índia, Oriente Médio, Egito, Arábia e norte da África. Ela se perpetuou em ciclos epidêmicos até início do século XV. Esta pandemia é mais conhecida hoje. Na época, era vista como fruto de miasmas, contaminação pelo contato direto ou indireto de pessoas, castigo de Deus, praga de judeus ou de feiticeiras. Na verdade, ela foi precedida por uma grande fome, que varreu a Europa entre 1316 e1320. Creditemos-lhe também as precárias condições sanitárias. As cidades, na fase de formação do Ocidente (muito conhecida como Idade Média, expressão propositalmente evitada pelo autor), eram poluídas por esgoto e lixo. Os ratos eram tão comuns e familiares que não eram mencionados nas crônicas, assim como o bicho-de-pé no Brasil durante muito tempo. Só se tem mais conhecimento das infestações causadas por ele através dos escritos deixados pelos naturalistas e viajantes europeus em virtude de eles terem eles sido inclementemente atacados por essa espécie de pulga.
Estima-se que a Peste Negra tenha matado entre 30% a 60% da população da europeia. Podemos supor que 50 milhões de pessoas sucumbiram diante da pandemia. A população mundial devia girar em torno de 475 milhões. Ela deve ter caído para 375 milhões no século XIV. Para recuperar-se do baque, a Europa levou cerca de 200 anos. A peste retornou várias vezes em surtos epidêmicos localizados até XX. Por esse prisma, a Peste Negra do século XIV foi a mais letal pandemia da história. A pandemia causada pelo novo coronavírus da atualidade matou menos de um milhão até o fim de agosto de 2020 numa população mundial de nove bilhões.
Depois da Peste de Londres, em 1665-66, haverá ainda uma terceira pandemia desta doença, muito pouco conhecida pelo público leigo, e duas pandemias viróticas, além de pandemias potenciais que foram contidas. Essas três pandemias serão abordadas no próximo artigo.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS