Cinema: A fogueira de livros
Edgar Vianna de Andrade - Atualizado em 01/09/2020 17:05
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ENTITY_quot_ENTITYFahrenheit 451ENTITY_quot_ENTITY / Divulgação
Em homenagem ao centenário de nascimento de Ray Bradbury, voltei a assistir, depois de muitos anos, a “Fahrenheit 451”, um clássico de François Truffaut produzido em 1966. O filme toma como base para roteiro o livro de mesmo nome escrito por Ray Bradbury. O escritor se tornou um mestre da ficção cientifica, mas, curiosamente, não simpatizava muito com o que se denomina de progresso. Ele gostava muito dos livros em papel, bem como Umberto Eco. Assim como Edgar, cuja biblioteca já monta a oito mil títulos e cresce cada dia mais.
“Fahrenheit 451” é uma distopia, ou seja, um mundo indesejável. Nele, supõe-se um Estado totalitário que proíbe livros. Não como a Alemanha de Hitler, que temia os livros pelas ideias que eles poderiam divulgar a fim de que elas se alojassem nas mentes e motivassem ações contrárias ao governo. A Igreja proibiu livros e matou pessoas que desrespeitavam essa proibição. As ditaduras militares do Brasil, da Argentina e do Chile também abominavam os livros.
No caso de “Fahrenheit 451”, os livros são proibidos por ameaçarem a pretensa igualdade entre as pessoas e por lhes causarem sentimentos depressivos. Existe nesse Estado totalitário que zela pela felicidade de seus cidadãos um corpo de bombeiros que, ao contrário do que pensamos, aprende a incendiar em vez de debelar fogo. Reina um sistema policialesco e um clima de delação. Sempre que uma biblioteca grande ou pequena e/ou mesmo um simples livro são descobertos por investigação ou delação, uma viatura moderna dos bombeiros vai ao local descoberto, isola-o, invade-o e busca os livros. Seus soldados aprendem a localizar livros escondidos. Quando achados, eles são acumulados num local e incendiados. A uma temperatura de 451° fahrenheit, o papel incandesce. Aqui, sim, existe clara alusão à Igreja, que queimava o leitor, e a Hitler, que queimava os livros e sumia com o leitor.
Montag (Oskar Werner) é um competente oficial bombeiro em véspera de promoção. Ele é casado com Linda (Julie Christie de cabelo comprido) e vizinho de Clarisse (Julie Christie de cabelo curto). Ninguém sabe encontrar livros escondidos melhor que Montag. Ninguém odeia mais os livros do que ele. Mas, exatamente os fundamentalistas podem representar um perigo potencial. Giordano Bruno integrava a Ordem dos Dominicanos, que tinha por uma de suas atribuições definir os livros que podiam ou não ser lidos pelos católicos. Ele acabou gostando da leitura e começou a escrever livros perigosos. Terminou seus dias em 1600, queimado por heresia.
Montag rouba alguns livros das bibliotecas incendiadas e começa a lê-los. Sua visão vai mudando. Ele passa a perceber que sua mulher e suas amigas são pessoas fúteis e vazias. Ele agride verbalmente uma delas, que chora e se diz tomada por sentimentos que ela havia esquecido. O oficial comandante, com um livro de Aristóteles na mão, explica que o leitor daquele livro se acha superior aos que não o leram. Numa operação, o corpo de bombeiros descobre uma enorme biblioteca pertencente a uma senhora. Montag quer evitar o incêndio, mas seu comandante é implacável. A dona dos livros facilita o trabalho dos bombeiros. Ela mesma ateia fogo aos livros já molhados em combustível e se autoimola. Talvez seja a cena mais icônica do filme. Enquanto o fogo se alastra, aparece um número da revista “Cahiers du Cinéma”, na qual Truffaut teve papel importante como redator. Vê-se também uma imagem de Joana D’Arc sendo devorada pelo fogo, assim como a dona da biblioteca. O bom cineasta faz as imagens falarem.
Linda denuncia o próprio marido, que tem seus poucos livros queimados e consegue fugir, assim como Clarisse, que também era leitora. Eles vão para o campo, onde existia um grupo de pessoas que decoravam livros inteiros na esperança de chegar um dia em que haveria liberdade para a leitura. Montag se junta a eles.
No mundo atual, está acontecendo uma sutil queima de livros e de todas as bases sólidas de registro. Não é preciso ditadura que os proíba. Os registros virtuais estão dispensando os livros, os CD’s e os DVD’s. Ter acervos está se tornando algo superado porque, dizem os entusiastas das modernas tecnologias, pode-se conseguir tudo no Google ou nas plataformas digitais. Tenho feito essa experiência e não tenho encontrado o que desejo. Quando encontro, não me sinto seguro de sempre voltar a achar o link. Ao mesmo tempo, como no filme, cada pessoa atualmente é um livro. Mas, a maioria não passa de algumas folhas de papel mal escritas. Bradbury tinha razão em desconfiar das coisas novas.

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