Cândida Albernaz: Minha escolha
Cândida Albernaz - Atualizado em 03/09/2020 16:07
Com o frio que está fazendo hoje, não conseguirei dormir. Esse cobertor é fino e o papelão é pouco.
Andei o dia inteiro. É o que mais gosto de fazer. Claro que vem depois de falar enquanto ando. Falo muito, tudo o que penso ou pensei um dia, coloco para fora.
Às vezes percebo um e outro me olhando, mas na maioria das vezes, me concentro tanto no que não penso que pareço não ter nada ou ninguém em volta.
Quando fui atropelado me levaram para o hospital, foi necessário engessar o braço e passei a noite lá. Bati com a cabeça também. A vantagem de quando isso acontece é um dia inteiro com roupas limpas, comida quase quente e travesseiro. É a única coisa de que sinto falta: travesseiro! Mas não dá para carregar um deles para cima e para baixo. Na manhã seguinte recebi alta bem cedo. Precisavam do leito e eu da rua para respirar novamente.
Não sou sozinho como muitos pensam. Tenho um filho, Leandro, e tive uma mulher. De vez em quando a mente permite recordá-los. Vêm como lampejos e fogem com rapidez. Melhor que seja assim. A memória pode nos trazer muito sofrimento. Não gosto de sofrer e escolhi não sentir.
Leandro me encontrou de novo. É sempre a mesma coisa. Quer me levar para casa, cuidar do que como, dar roupas passadas e lembrar que sou avô. Vez ou outra vou com ele e fico por uma semana. Ou duas. Depois saio em busca da minha liberdade e do pensar em nada pensando em tudo ao mesmo tempo.
Gosto de cantar também e quando estou feliz, danço. Pessoas se reúnem olhando, riem das piruetas que faço ou do som da minha voz. Alguns jogam moedas e se não passar nenhum daqueles garotos que não respeitam ninguém, consigo alguns trocados para um almoço decente.
Quando minha mulher se foi com um sujeito que se dizia amigo, nunca mais tive um, pensei que ficaria louco. Pensei tanto nisso, que fiquei e foi a melhor coisa que fiz por mim.
Na verdade, ela dizia que eu estava ficando maluco há algum tempo. Deixava-a falar e vivia a vida do trabalho para casa. Não fazia outra coisa. A não ser beber com alguns amigos nos fins de semana. Não percebi que um deles sempre chegava mais tarde. Sempre de banho tomado, sempre com um sorriso filho da puta na cara e sempre sem me encarar.
Levou minha mulher com ele um dia. Disseram para eu seguir em frente porque ela não valia nada. Eu é que sei se ela valia ou não.
Senti a cabeça começar a doer. Não posso pensar demais que logo vem essa dor. A parte boa é que minha memória é fraca e do jeito que vem, o que vivi vai embora. Foi!
Estou com vontade de cantar e é o que eu vou fazer. Gosto de ser diferente de vez em quando porque a vida das pessoas normais é muito chata. E machuca.
Hoje resolvi dormir num lugar diferente. Ainda bem que não arranjei confusão com ninguém. Sou forte, e quando é necessário, brigo pelo canto onde quero dormir e tiro quem estiver no lugar na base da porrada.
Quando estou na casa de Leandro, não gosto de incomodar. Fico quieto, obedeço e procuro não sujar ou quebrar nada. Meu neto fica olhando, mas não chega perto. Prefiro desse jeito porque já tenho recordações demais para atrapalhar. Fugiu mais uma vez.
Olho o céu e noto que não vai chover. O dia amanhã vai ser bom e a caminhada longa. Só não perguntem para onde vou.
Para algum lugar e é nisso que gosto de pensar.
Acho que lá, vou rir, não, vou gargalhar. Talvez deem algumas moedas.

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