O dia depois de amanhã
Edmundo Siqueira 11/09/2022 16:19 - Atualizado em 11/09/2022 16:33
Mauro Pimentel/AFP
Domingo, depois do churrasco.

— Você precisa ser mais simpático, Alberto. — disse a esposa, logo que entrou no carro.
— Como assim, Marcele? O que eu fiz dessa vez? — respondeu já colocando a chave na ignição.
— O que você fez? Destratou meu primo que veio de Brasília. Fiquei toda envergonhada.


Alberto e Marcele estão casados há mais de 20 anos. No domingo, a contragosto do marido, foram a um churrasco na casa de parentes. Alberto é professor de ciência política e advogado, atuou em diversas causas pro bono em defesa de mulheres que sofriam violência doméstica. Marcele, engenheira, sócia de um escritório de arquitetura.

— Ah, ele mereceu, você tem que concordar comigo. Eu te disse que não queria ir.
— Não vem com essa que “ele mereceu”, Beto. Você me prometeu que não ia conversar sobre política — Marcele cruzou os braços e virou o rosto para a janela do carro. Ficou visivelmente chateada; mais pelo descumprimento da promessa do marido do que pelos sentimentos do primo.
— Tá bom, me desculpe.

Embora a política fosse uma das atividades de Alberto, ela estava restrita à academia. Não havia nenhum envolvimento partidário de sua parte — decisão antiga, tomada ainda na juventude. Mas, como leciona sobre o assunto, acompanha os acontecimentos e estava especialmente interessado em como a propaganda política influenciava no comportamento das pessoas.

Desde o início do governo Bolsonaro, Marcele havia percebido que o marido vinha ficando mais distante, mais submerso nos livros, menos propenso ao contato pessoal fora dos círculos íntimos. A pandemia havia agravado esse processo, claro.

— Se a gente ficar assim, vamos acabar perdendo nossos amigos. Você tem que aceitar que as pessoas pensam diferente — disse Marcele, depois de um tempo de silêncio.
— Não se trata disso, e você sabe. Diferenças são normais e precisamos delas. O que não entendo é como ainda tem gente que apoia um governo como esse. Na verdade até entendo, mas é difícil aceitar. Seu primo é um desqu…
— Pode parar, Alberto — interrompeu Marcele — o problema é esse, você quer desqualificar os outros. Não pode.
— Não podemos tolerar os intolerantes — Marcelo disse em tom mais baixo, como se falasse para ele mesmo, enquanto girava o volante.
— Nem vem citando o Popper, você não está na sala de aula.
— Olha só, melhor a gente parar. Já pedi desculpas.

Alberto desligou o carro e desceu no posto. Foi na loja de conveniências comprar cigarros. Enquanto ficou sozinha, Marcele lembrou-se de uma explicação sobre ideologias que o marido tinha dado numa outra noite. Dizia que as pessoas não são divididas entre esquerda e direita, pois existiriam tons de cinza entre o preto e o branco. Alberto teria classificado em três as ideologias mais frequentes na sociedade, principalmente depois da Revolução Francesa: conservadores, liberais e socialistas.
Durante o processo revolucionário começado em 1789, na França, os girondinos, considerados mais moderados e conciliadores, ocupavam o lado direito da Assembleia Nacional Constituinte, enquanto os jacobinos, mais radicais e exaltados, ocupavam o lado esquerdo.
Durante o processo revolucionário começado em 1789, na França, os girondinos, considerados mais moderados e conciliadores, ocupavam o lado direito da Assembleia Nacional Constituinte, enquanto os jacobinos, mais radicais e exaltados, ocupavam o lado esquerdo. / Reprodução


Os conservadores respeitam as tradições, entendem que a sociedade foi criada em bases sólidas e são resistentes às mudanças bruscas ou revolucionárias. Perceberam que as mudanças radicais não produziram bons efeitos, e que existe um tempo certo para as coisas acontecerem. São reformistas, acreditam que as injustiças sociais se resolvem gradativamente, em movimentos de evolução social.

Os liberais entendem que a liberdade individual é quase absoluta; liberdades essenciais como o direito à livre expressão, a intimidade e a propriedade. Percebem que a sociedade civil não deve se submeter ao poder discricionário do Estado para além de imposições legais básicas e estabelecidas por meio de um contrato social claro. Acreditam que a livre iniciativa e o livre mercado regulam a economia, e a concorrência controla os exageros.

Os socialistas — Alberto ressalvou que nem sempre a ideologia pessoal teria bases marxistas — seriam pessoas que percebem a sociedade em uma constante luta de classes. As tensões criadas deveriam sempre ser trazidas para o entendimento das massas, para que as explorações e injustiças fossem combatidas através da conscientização. São pessoas que compreendem que o Estado deve ter um papel central na sociedade, para que crie ordenamentos legais que protejam os indivíduos e diminuam as desigualdades. Priorizam o caráter coletivista do ordenamento social, entendendo que o contrário produz miséria e morte.

— Conseguiu? — Marcele sabia que naquele posto Alberto sempre achava a marca que gostava.
— Sim. — respondeu secamente.
— Enquanto estava lá, lembrei de uma conversa que a gente teve. Meu primo não estaria em uma das ideologias que você falou que existem?
— Esse é o problema, Marcele. Ele não está. As ideias que ele defendia não eram dele, ou mesmo vindas de sua ideologia. Tudo que ele falava era fruto de ódio e ressentimento. Ele não vê alguém que pensa diferente dele como um adversário político, vê como alguém que deveria ser eliminado. Morto mesmo. Isso é muito sério, não pode ser normalizado. Seu primo não é conservador, é um reacionário fabricado por uma estratégia política.
— Tá, até concordo com você. Mas será que vamos convencê-lo de que ele está errado? Assim vamos ter que viver brigando.
— Não quero convencer ninguém. Isso é papel de quem tem função pública e busca o voto. Mas eu faço minha parte, e acredito na educação como um instrumento libertador.
— Eu sei, Beto. É mesmo difícil. Mas me promete que vai ficar mais tranquilo? Tenho te achado meio triste.
— É a realidade, é a realidade…
— Pode ser, mas ela é como é, não como gostaríamos que fosse.

Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru
Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru / Ernesto Benavides/AFP
O casal seguiu em silêncio até a casa, quebrado apenas pelo “boa noite” dado ao funcionário da guarita do condomínio. Alberto desceu primeiro do carro, e esperou a esposa antes de abrir a porta da entrada da sala. Mexia no molho de chaves com as duas mãos, de cabeça baixa. Marcele se aproximou e lhe deu um beijo no rosto.


— Não fique triste, as coisas vão melhorar.

Entraram, tomaram banho juntos, riram de lembranças boas da festa, comeram uma pedaço de pizza e tomaram o restinho do vinho que havia sobrado do sábado a noite, e foram dormir; o dia começaria cedo na segunda.

Antes de adormecer, Alberto tenta achar um caminho para de fato as “coisas melhorem”, mas volta a ficar preocupado. Reafirma a si mesmo que o Brasil investiu pouco e errado em educação, que a ciência e tecnologia foram sucateadas no atual governo, universidades igualmente, que a cultura sofreu revezes gravíssimos nos últimos anos e que outros tantos avanços civilizatórios foram perdidos.

Mas um pensamento fez com que finalmente dormisse: o tal golpe, militar ou de fechamento de instituições como o STF, é mais uma narrativa e propaganda do que realidade. É quase impossível, e o grande capital brasileiro já teria traçado uma linha no chão onde o presidente não poderia atravessar. Reafirmou seus estudos e teve a certeza que o fascismo foi um fenômeno europeu do início do século passado, com especificidades do contexto histórico e econômico. E percebeu que Bolsonaro é um clássico liberal-autoritário-latino-americano, mais para Fujimori do que para Mussolini, embora se assemelha aos dois em algum sentido. Então, talvez o Brasil comece a superar esse estado de coisas.

Mesmo analisando o quadro eleitoral, e sendo o primeiro e segundo lugar opções desastrosas em sua visão, adormeceu mais tranquilo. Amanhã, será outro dia.



ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Edmundo Siqueira

    [email protected]