"A Cavalhada de Santo Amaro pode acabar" Polêmica entre padre e Comissão pode encerrar tradição de 300 anos
Edmundo Siqueira 19/01/2022 09:48 - Atualizado em 19/01/2022 11:06
A Cavalhada de Santo Amaro representa uma parte importante da vida de Fernando Teles. Ele aprendeu, desde muito novo, o significado etimológico da palavra ‘tradição’ — ação de transmitir algo a alguém; comunicação oral de fatos, ritos e costumes entre gerações. A Cavalhada é uma tradição na baixada campista, e encontra no distrito de Santo Amaro as pessoas que a mantém viva. Fernando é uma delas. Como um dos principais organizadores, vive intensamente o evento histórico-cultural que acontece sempre dia 15 de janeiro — há quase 300 anos.
A pandemia impôs à Cavalhada a única interrupção já registrada. Em 2021 não houve a encenação da batalha entre mouros e cristãos. Mas há três dias ela voltou a acontecer. A população de Santo Amaro recebeu novamente os milhares de visitantes que a Cavalhada e as outras festividades do 15 de janeiro trazem à localidade. Porém, Fernando saiu desta edição bastante desgastado; e não foi só pelo esforço físico.
Apenas para ambientar o leitor que pode não conhecer, a Cavalhada foi trazida ao Brasil pelos padres jesuítas em 1826 para integrar a Festa do Divino Espírito Santo. Elas representam as lutas travadas entre cristãos e mouros, quando o exército muçulmano, depois de conquistar Portugal e Espanha, resolve invadir a França. As Cavalhadas também fazem alusão ao rei francês Carlos Magno, que sofre uma emboscada ao sair da Espanha, no ano de 778. Segundo a tradição, Carlos Magno regressa e vinga sua morte e de seus nobres cavaleiros.
Os combates entre mouros e cristãos que originaram as Cavalhadas lá no século oito, é a referência histórica “de fora”. Por aqui, a primeira encenação realizada na Baixada Campista ocorreu em 1730, segundo a pesquisadora Gisele Gonçalves. Citando Alberto Lamego, ela diz que o Solar do Colégio dos Jesuítas, hoje Arquivo Público Municipal, foi cenário de “pomposas festividades” e “onde foram, pela primeira vez, as corridas das cavalhadas”.
"Temos que tomar uma atitude de uma vez só, nem que cheguemos ao Papa Francisco, ou se não a tradição da Cavalhada de Santo Amaro vai acabar. O padre Alcemar quer acabar com a cavalhada" (Fernando Teles)
Passados 292 anos, a Cavalhada corre sério risco de desaparecer. O embate atual também envolve a Igreja. O padre Alcemar da Silva, responsável pelo Santuário de Santo Amaro, teria se negado a dar a benção aos cavaleiros, como determina a tradição. Liderados por Fernando Teles, os ornamentados cavaleiros não seguiram abençoados para a batalha. “Temos que tomar uma atitude de uma vez só, nem que cheguemos ao Papa Francisco, ou se não a tradição da Cavalhada de Santo Amaro vai acabar. O padre Alcemar quer acabar com a cavalhada”, disse Fernando.

O que diz a Igreja
O bispo de Campos, Dom Roberto, gentilmente, como sempre, se propôs a comentar o assunto.

— Há motivos de desentendimento que levam a repensar o sentido eclesial da cavalhada, que nunca foi um espetáculo separado da fé. É necessário dialogar e colocar o bem comum da Igreja e da sociedade sobre interesses parciais pois a Festa tem 289 (292, segundo Lamego) anos de respeito a uma identidade católica.
 
"Ninguém na diocese tem animosidade contra a cavalhada, mas ela tem que respeitar o conjunto harmonioso da festa e não se comportar como se fosse alheia ao padre, que está todo o ano animando a comunidade. Falta diálogo e comunicação." (Dom Roberto)
De fato, a Cavalhada não pode ser dissociada da Igreja Católica. Não apenas pela representação que se propõe, mas pela simbiose que a manifestação histórico-cultural em Campos tem com Santo Amaro e sua igreja, inclusive com seu entorno.

Dom Roberto esclarece que não há nenhuma “animosidade” com a cavalhada, por parte da Diocese, ou mesmo dos representantes religiosos em Santo Amaro. Disse que faltou “diálogo e comunicação”.
— Gostaria de refletir sobre as informações veiculadas pelo Sr. Fernando Telles, que o padre teria se negado a dar a benção. Posso dizer de alto e de bom som que o padre nunca se negou a abençoar a cavalhada. Porém, no dia da Festa ele tem mil coisas a atender e faltou comunicação de quando chegariam os cavaleiros. Ele não pode ficar esperando no altar até que decidam entrar. A interpretação não pode ser pessoal ou tendenciosa, mas procurar os fatos. Ninguém na diocese tem animosidade contra a cavalhada, mas ela tem que respeitar o conjunto harmonioso da festa e não se comportar como se fosse alheia ao padre, que está todo o ano animando a comunidade. Falta diálogo e comunicação.
O bispo informa que essa é a versão do padre, que ele corrobora e me repassa. Cita que algo semelhante já havia acontecido. Agradece meu “empenho em prol de averiguar mais amplamente os acontecimentos”, e compartilha um áudio do padre Alcemar sobre o ocorrido.
A Comissão Organizadora da Cavalhada de Santo Amaro se manifesta
Fernando Teles alega que não houve falha de comunicação, e que uma tradição de quase 300 anos, de grande importância para o local, não precisaria ser avisada com antecedência. Para se manifestar com mais segurança e representatividade, pediu um tempo para consultar seus pares, e produziu uma Nota sobre o ocorrido, assinada pela Comissão da Cavalhada.

“A Comissão da Cavalhada de Santo Amaro vem há muito lutando para manter viva essa tradição que é histórico-cultural, mas também símbolo da religiosidade tão característica da nossa região. A Cavalhada sempre representou a paz, a união e o diálogo estreito entre fé e cultura. Não importam as circunstâncias, assim tem sido e assim continuará sendo, apesar das últimas e recorrentes tentativas que sofremos (...) contra essas tristes tentativas é que nos levantamos e erguemos a nossa voz, justamente em nome da tradição e da cultura do nosso lugar e do nosso povo”, começa a Nota.
A Comissão afirma que “contra fatos faltam argumentos que sejam plausíveis e verdadeiros”, e lembra que Cavalhada “se apresenta há quase trezentos anos na Festa de Santo Amaro, e recebe as bênçãos da Igreja e do Padre local ao longo da sua apresentação”.
O último dia 15 foi marcado por essa controvérsia, em Santo Amaro. Cavaleiros, comunidade e Igreja sofreram desgastes e as festividades estão ameaçadas. A tradição de Santo Amaro leva milhares de fiéis ao local todos os anos, o que deu àquela igreja o status de Santuário — local de peregrinação. Além do alto valor afetivo, histórico e cultural que a Cavalhada e a Festa de Santa Amaro possuem, o evento também movimenta a economia do distrito.
“Ocorre que no último dia 15 de janeiro, sábado último, mais uma vez o Padre Alcemar Pereira da Silva não deu as bênçãos aos cavalheiros(...) Comissão e povo são testemunhas do que ocorreu e todos que lá estavam podem atestar o ocorrido. Como um padre alega não ter sido avisado de algo que historicamente acontece há séculos e séculos, de uma tradição com quase 300 anos de história? É sabido na comunidade local os desconfortos causados pelo ocorrido e que não foram exclusivos deste ano de 2022. Em 2020, o mesmo aconteceu”, continua a Nota. E afirma ainda: “a Cavalhada mais uma vez foi desprestigiada e desrespeitada dentro do solo sagrado da Igreja Católica”.
Para além de Santo Amaro
Por todo simbolismo e apelo histórico-cultural que um evento como a Cavalhada traz, o município de Campos a reconheceu como patrimônio imaterial. Através da resolução nº 001, publicada no Diário Oficial do município em 27 de dezembro de 2011, o Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural (Coppam) reconhece a Cavalhada como uma manifestação única da história e da cultura, não apenas da cidade de Campos, mas de todo o Estado do Rio de Janeiro.
Em matéria da Folha da Manhã de 2021, com parte reproduzida na nota da Comissão da Cavalhada, foi informado possíveis violações do bem tombado, o que deve ser objeto de análise pelo Coppam. A matéria alertava para “uma obra do pároco da Igreja, o padre Alcemar, que demoliu o vestiário do campo de futebol da localidade” e que “(o padre) cercou a área onde acontece o evento”. E trazia outro embate: “o Santuário estaria querendo mudar o horário da apresentação das 15h para às 18h, que para organizadores é impraticável”.
Segundo fonte da área cultural, será pedido oficialmente ao Coppam uma vistoria ao local e “providências no que se refere a descaracterização da Igreja de Santo Amaro, localizada no 3º Distrito de Campos”, além do tombamento do campo em que é realizada a Cavalhada, que deverá fazer parte do “conjunto cultural de Santo Amaro”.

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