O tema das frentes políticas voltou à cena no Brasil e tem sido abordado de variadas maneiras desde que a democracia passou a ser ameaçada pelo Presidente Jair Bolsonaro.
O cientista político Sérgio Abranches, por exemplo, o abordou pelo viés das lideranças, considerando que há “muita incompreensão e ressentimento” por parte de “lideranças que se consideram democráticas” mas, no fundo, são intolerantes “diante de (…) grupos de campos ideológicos distintos”. As frentes, prossegue, deveriam ser formadas com base numa “agenda mínima”, deixando-se de lado, por um certo tempo, “questões específicas” e ideológicas em prol da “contradição principal", que seria a disjuntiva "neofascismo versus democracia republicana".
Em abordagem distinta, porém igualmente crítica, o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques invoca a ameaça protofascista como um processo de deterioração interna da própria democracia, o que, a princípio, nos oferece melhores condições para o entendimento da questão frentista. Ocorre, porém, que Henriques diagnostica a escolha "historicamente desesperada” por Bolsonaro como a reação de pessoas que querem "voltar atrás no tempo, negar conquistas, fugir a incertezas e desafios”, descrição que corresponde a uma fração dos que o apoiam.
Seja como for, o remédio por ele apresentado para enfrentar o problema, inspirado na "experiência da luta contra o regime ditatorial”, é o do “centro político” como "um espaço povoado (…) para fazer mover (…) o conjunto das forças políticas e a própria sociedade” em defesa do livre jogo democrático. A pedra no caminho desta alternativa seria a “incerteza sobre o principal partido da esquerda, sua linha básica e a orientação dos seus simpatizantes, que não foram 'treinados' na política de frente”. Para o PT, prossegue, bastaria constituir tal frente, "acenar simbolicamente para o centro, escolhendo (…) um vice-presidente ‘conservador' (…)” para “'acalmar os mercados’”.
Os problemas e desafios que ambos autores colocam são reais e necessitam de solução, embora me pareça que o “centro político” esteja longe de poder oferecer qualquer alternativa no atual contexto brasileiro, perdido que está em sua ortodoxia programática e sua catatonia política desde 2002.
O problema remonta ao início do atual período democrático, mais especificamente ao modo como o o “centro político” degenerado, acochado no regime militar, foi capaz de se reerguer e se reinventar nos governos seguintes. Os primeiros sinais apareceram já no processo constituinte (1986-1988) quando, ao lado da intensa mobilização social pela nova Carta, surge das urnas uma representação política ceifada dos melhores quadros político-intelectuais que animaram tal mobilização.
As crises que se seguiram, inclusive o impeachment de Fernando Collor (1992) – cujos crimes ficaram impunes –, só agravaram o fenômeno, fazendo com que as palavras de Ulisses Guimarães, o velho timoneiro da resistência contra a ditadura no MDB, se tornassem proféticas em 1989: "se você acha que o atual Congresso é ruim, então espere pelo próximo".
Desde então, o centro gravitacional da nova política brasileira foi saindo do eixo do MDB em direção aos partidos (PSDB e PT) que se mostravam mais dispostos a fazer reformas estruturais no país. O ponto de virada foi o Governo Itamar Franco (1992-1994), que conseguiu reconstruir a frente democrática para assumir o cargo e estancar a grave crise econômica agravada por Collor. A frente de Franco, que abarcaria da direita liberal à esquerda moderada (ex-comunistas), embora centrada na urgência de estancar a hiperinflação e manter a higidez republicana do sistema, não conseguiu atrair o grosso da esquerda, cujo maior partido (PT) expulsou os que a apoiaram.
O ensaio de recuperação da jovem democracia, todavia, refluiria nos anos seguintes, apesar das ondas benfazejas do Plano Real (1994). Mesmo sob a direção de Fernando Henrique (1995-2001), coordenador do Plano no período de Franco, as reformas se ativeram à liberalização, sem enfrentar o desafio do desenvolvimento nacional na periferia do capitalismo e, principalmente, sem confrontar diretamente as práticas neopatrimoniais e anti-republicanas dos aliados conservadores.
Os dois mandatos de Lula (2003-2010) e de Dilma Roussef (2011-2016) – também interrompido por impeachment –, com suas reformas assistencialistas e o populismo cambial herdado de Cardoso, só agravaram o problema, como ficou provado nos escândalos de corrupção conhecidos como Mensalão e Petrolão.
Ao invés de formarem governos frentistas, tal como Franco fez, em prol de reformas econômico-sociais que enfrentassem os problemas econômico-sociais mais urgentes, PSDB e PT optaram por governos de compromisso apoiados, principalmente, em forças políticas anacrônicas, o que acabou por obliterar o caminho das reformas que poderiam destravar o desenvolvimento e evitar a crise atual.
A crise que hoje consome a democracia brasileira, não se limita nem se esgota no bolsonarismo, que se afigura mais como um marcador da insustentabilidade de uma democracia de pés de barro. Baseada na dependência interpessoal, que se desdobra na “venda de votos”, e na fragilidade financeira, que impede a mobilidade social, a democracia brasileira decai, enredada em problemas estruturais expressos na precarização do trabalho e no desmonte das cadeias produtivas, com a desmobilização de seus trabalhadores e o fechamento de suas empresas.
Nenhuma democracia conhecida no mundo moderno se sustenta sobre tais bases, basta ver o cenário político que hoje ameaça as democracias ocidentais vítimas da desindustrialização – cenário agravado pela escalada inflacionária da pandemia e da guerra na Ucrânia.
No Brasil, onde o tecido social é estruturalmente frágil, o resultado não poderia ser melhor, como vemos com Bolsonaro e suas reiteradas ameaças de golpe de Estado em paralelo com o armamentismo incentivado pela extrema-direita.
Todavia, é ingênuo supor que reverteremos este delicado quadro simplesmente derrotando Bolsonaro em 2022 e recolocando no poder as lideranças responsáveis pelo fracassado "egoísmo de partido" que nos trouxe até aqui.
Se quisermos, de fato, salvar nossa frágil democracia, devemos voltar à frente democrática de Franco, baseada em programa para resolução de problemas, ao invés da mera defesa abstrata de princípios democráticos: única forma de superar a polarização populista, pôr termo à crise econômico-social e restaurar a crença popular no pacto de 1988.