Qual frente democrática para o Brasil?
16/05/2022 | 11h13
O tema das frentes políticas voltou à cena no Brasil e tem sido abordado de variadas maneiras desde que a democracia passou a ser ameaçada pelo Presidente Jair Bolsonaro.
O cientista político Sérgio Abranches, por exemplo, o abordou pelo viés das lideranças, considerando que há “muita incompreensão e ressentimento” por parte de “lideranças que se consideram democráticas” mas, no fundo, são intolerantes “diante de (…) grupos de campos ideológicos distintos”. As frentes, prossegue, deveriam ser formadas com base numa “agenda mínima”, deixando-se de lado, por um certo tempo, “questões específicas” e ideológicas em prol da “contradição principal", que seria a disjuntiva "neofascismo versus democracia republicana".
Em abordagem distinta, porém igualmente crítica, o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques invoca a ameaça protofascista como um processo de deterioração interna da própria democracia, o que, a princípio, nos oferece melhores condições para o entendimento da questão frentista. Ocorre, porém, que Henriques diagnostica a escolha "historicamente desesperada” por Bolsonaro como a reação de pessoas que querem "voltar atrás no tempo, negar conquistas, fugir a incertezas e desafios”, descrição que corresponde a uma fração dos que o apoiam.
Seja como for, o remédio por ele apresentado para enfrentar o problema, inspirado na "experiência da luta contra o regime ditatorial”, é o do “centro político” como "um espaço povoado (…) para fazer mover (…) o conjunto das forças políticas e a própria sociedade” em defesa do livre jogo democrático. A pedra no caminho desta alternativa seria a “incerteza sobre o principal partido da esquerda, sua linha básica e a orientação dos seus simpatizantes, que não foram 'treinados' na política de frente”. Para o PT, prossegue, bastaria constituir tal frente, "acenar simbolicamente para o centro, escolhendo (…) um vice-presidente ‘conservador' (…)” para “'acalmar os mercados’”.
Os problemas e desafios que ambos autores colocam são reais e necessitam de solução, embora me pareça que o “centro político” esteja longe de poder oferecer qualquer alternativa no atual contexto brasileiro, perdido que está em sua ortodoxia programática e sua catatonia política desde 2002.
O problema remonta ao início do atual período democrático, mais especificamente ao modo como o o “centro político” degenerado, acochado no regime militar, foi capaz de se reerguer e se reinventar nos governos seguintes. Os primeiros sinais apareceram já no processo constituinte (1986-1988) quando, ao lado da intensa mobilização social pela nova Carta, surge das urnas uma representação política ceifada dos melhores quadros político-intelectuais que animaram tal mobilização.
As crises que se seguiram, inclusive o impeachment de Fernando Collor (1992) – cujos crimes ficaram impunes –, só agravaram o fenômeno, fazendo com que as palavras de Ulisses Guimarães, o velho timoneiro da resistência contra a ditadura no MDB, se tornassem proféticas em 1989: "se você acha que o atual Congresso é ruim, então espere pelo próximo".
Desde então, o centro gravitacional da nova política brasileira foi saindo do eixo do MDB em direção aos partidos (PSDB e PT) que se mostravam mais dispostos a fazer reformas estruturais no país. O ponto de virada foi o Governo Itamar Franco (1992-1994), que conseguiu reconstruir a frente democrática para assumir o cargo e estancar a grave crise econômica agravada por Collor. A frente de Franco, que abarcaria da direita liberal à esquerda moderada (ex-comunistas), embora centrada na urgência de estancar a hiperinflação e manter a higidez republicana do sistema, não conseguiu atrair o grosso da esquerda, cujo maior partido (PT) expulsou os que a apoiaram.
O ensaio de recuperação da jovem democracia, todavia, refluiria nos anos seguintes, apesar das ondas benfazejas do Plano Real (1994). Mesmo sob a direção de Fernando Henrique (1995-2001), coordenador do Plano no período de Franco, as reformas se ativeram à liberalização, sem enfrentar o desafio do desenvolvimento nacional na periferia do capitalismo e, principalmente, sem confrontar diretamente as práticas neopatrimoniais e anti-republicanas dos aliados conservadores.
Os dois mandatos de Lula (2003-2010) e de Dilma Roussef (2011-2016) – também interrompido por impeachment –, com suas reformas assistencialistas e o populismo cambial herdado de Cardoso, só agravaram o problema, como ficou provado nos escândalos de corrupção conhecidos como Mensalão e Petrolão.
Ao invés de formarem governos frentistas, tal como Franco fez, em prol de reformas econômico-sociais que enfrentassem os problemas econômico-sociais mais urgentes, PSDB e PT optaram por governos de compromisso apoiados, principalmente, em forças políticas anacrônicas, o que acabou por obliterar o caminho das reformas que poderiam destravar o desenvolvimento e evitar a crise atual.
A crise que hoje consome a democracia brasileira, não se limita nem se esgota no bolsonarismo, que se afigura mais como um marcador da insustentabilidade de uma democracia de pés de barro. Baseada na dependência interpessoal, que se desdobra na “venda de votos”, e na fragilidade financeira, que impede a mobilidade social, a democracia brasileira decai, enredada em problemas estruturais expressos na precarização do trabalho e no desmonte das cadeias produtivas, com a desmobilização de seus trabalhadores e o fechamento de suas empresas.
Nenhuma democracia conhecida no mundo moderno se sustenta sobre tais bases, basta ver o cenário político que hoje ameaça as democracias ocidentais vítimas da desindustrialização – cenário agravado pela escalada inflacionária da pandemia e da guerra na Ucrânia.
No Brasil, onde o tecido social é estruturalmente frágil, o resultado não poderia ser melhor, como vemos com Bolsonaro e suas reiteradas ameaças de golpe de Estado em paralelo com o armamentismo incentivado pela extrema-direita.
Todavia, é ingênuo supor que reverteremos este delicado quadro simplesmente derrotando Bolsonaro em 2022 e recolocando no poder as lideranças responsáveis pelo fracassado "egoísmo de partido" que nos trouxe até aqui.
Se quisermos, de fato, salvar nossa frágil democracia, devemos voltar à frente democrática de Franco, baseada em programa para resolução de problemas, ao invés da mera defesa abstrata de princípios democráticos: única forma de superar a polarização populista, pôr termo à crise econômico-social e restaurar a crença popular no pacto de 1988.
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A frente ampla de Lula
05/04/2022 | 16h14
*Por Hamilton García de Lima / Latinoamérica 21
As articulações do ex-presidente Lula em direção ao retorno ao poder continuam de vento em popa, como se diz no jargão náutico. O que não se sabe é se tal navegação o levará a porto seguro ou se será tragado pelas tempestades no caminho. O certo é que, mesmo que chegue ao destino almejado, o desembarque da tripulação em terra firme apresenta desafios que não podem ser negligenciados.
O PT, até aqui, nunca foi um partido de frentes amplas, até porque se constituiu como uma frente de fato, em luta pela superação do velho comunismo brasileiro representado pelo PCB. Neste longo trajeto, que começou em 1979, sindicalistas, teólogos da libertação, comunistas dissidentes de todos os tipos e ecologistas, se agruparam em torno de um discurso anti-sistema pela derrubada da ditadura militar – cuja superação se deu pela força do voto combinada a uma transição negociada pelo MDB, que custou ao PCB o posto de força hegemônica da esquerda brasileira abrindo espaço para o PT.
Governar sem compromissos programáticos
Desde então, o PT vem apostando no “quanto pior melhor” até a campanha eleitoral de 2002, quando uma mudança de discurso lhe permitiu conquistar a Presidência sem assumir compromissos programáticos consistentes com aliados sérios no parlamento, preferindo navegar pelos desvãos dos interesses mal constituídos da política brasileira, processo que desembocou no Mensalão e no Petrolão.
A posterior ampliação das alianças, com a incorporação do PMDB e PP, não só não foi capaz de desviar o PT da rota de compra das bancadas à direita para remediar sua minoria legislativa, como lhe deu estofo para aprofundar tal prática.
Por quais razões, então, deveríamos apostar na atual conversão do lulopetismo à frente ampla? Uma resposta vem do sociólogo Luiz Werneck Vianna, um nome destacado da intelectualidade democrática de esquerda. Para ele, "uma nova oportunidade” se abre "diante do quadro de excepcionalidade em que vive o país”, se referindo ao desastre econômico-social da pandemia e ao modo como o governo de Bolsonaro tentou tirar proveito da situação para impor um regime discricionário.
Neste contexto, aliança Lula-Alckmin, para Werneck Vianna, seria "a fórmula abrasileirada da geringonça” portuguesa, unindo "as experiências da social-democracia entre nós” e formando uma frente política capaz de enfrentar a extrema direita, agora aliada ao Centrão – um bloco "no controle social e político da massa dos retardatários da modernização brasileira”, que se projeta a partir dos "interesses emergentes no agronegócio e das elites no comando das finanças” (dois setores modernos, diga-se de passagem).
O problema desta propositura está em que tais privilégios não só não foram abertamente enfrentados pelo PSDB em seus oito anos no poder, como foram fortalecidos nos treze anos de governos do PT. A Operação Lava-Jato a atestou ao trazer à tona tais práticas, devidamente provadas e punidas pelo sistema judiciário brasileiro, embora reiteradamente negadas pelo líder máximo e demais dirigentes petistas (processos em vias de anulação por uma série de casuísmos jurídicos cuja natureza se encontra à léguas de distância das verdadeiras garantias constitucionais).
Não se pode descartar, obviamente, que as agruras pelas quais passou nossa social-democracia tupiniquim, inclusive a revolta de 2013, não tenham ensinado algo às suas lideranças. Todavia, a circunstância e o método de construção desta suposta frente ampla em torno de Lula, que Werneck Vianna acredita capaz “de resgatar as melhores promessas que cultivamos ao longo da nossa trajetória”, não são nada promissoras.
Em primeiro lugar, por estar marcada pelo interesse imediatamente eleitoral de Lula em liquidar a eleição no primeiro turno, o que o aliviaria de maiores compromissos programáticos no segundo turno. Em segundo lugar, por girar em torno da liderança carismática do ex-presidente, que se elevaria a árbitro supremo da “geringonça" em formação.
Outra iniciativa, na mesma direção, vem dos (poucos) signatários do manifesto "Movimento Pelo Brasil”, articulado por uma dissidência da Rede Sustentabilidade. Caracterizando a eleição vindoura como um “plebiscito”, este grupo assevera que “não há dúvida que a história está fazendo Lula representar a alternativa que o Brasil deve abraçar”, por conta dos "acertos de seus dois governos e a disposição em construir uma frente ampla programática”.
Essa percepção se baseia não só no esquecimento dos erros cometidos nos dois governos de Lula e no governo e meio de Dilma – cuja paternidade é inegável –, como também em uma confiança naïf estabelecida a partir de uma disposição sem base efetiva de sustentação em práticas institucionais de acordos e diálogos.
A única articulação seriamente programática promovida pelo PT está ocorrendo em torno da formação de uma federação com o PSB, o PCdoB e o PV, até aqui fortemente marcada pela mera matemática do número de prefeituras governadas por cada partido, o que patenteia o fracasso da esquerda em alçar vôo sobre o pântano em que se transformou o sistema partidário-parlamentar brasileiro.
As rupturas necessárias e improváveis
Nem todos se embalam neste canto de sereia. Um importante meio de imprensa sustentou, recentemente, em seu editorial que "a irresponsabilidade demagógica" prevalecente há 20 anos no país, "com exceção do (…) governo de Michel Temer", significou o “retrocesso e destruição do futuro” que culminou no bolsonarismo e no lulopetismo repaginado, cuja promessa de “reconstrução e transformação do Brasil” se desmancha diante da persistência do negacionismo da necessidade de reformas, que adiou por todo o período em que esteve no poder.
Se bem que possamos divergir da grande mídia sobre a natureza das reformas que o país precisa, concordamos que "Lula não está disposto ao trabalho árduo de promover mudanças legislativas estruturais, politicamente difíceis e que exigem contrariar interesses de setores organizados”.
Para desespero dos que continuam apostando na ruptura democrática com a ordem neopatrimonial-financeira, que extorque o presente e rouba o futuro do Brasil, o mais provável é que Lula e o PT continuem inclinados à restaurar o (insustentável) equilíbrio da Nova República cujo cadáver resiste baixar à sepultura.
* Hamilton Garcia de Lima. Doutor em História Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Mestre em Ciência Política pela UNICAMP. Professor de Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
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O plebiscito de Ciro
02/02/2022 | 14h58
O movimento estratégico de Lula na direção do centro político, tanto para consolidar seu favoritismo e tentar catapultá-lo à Presidência já no primeiro turno, como para construir uma alternativa parlamentar ao Centrão, em caso de vitória, parece ter mexido com o tabuleiro eleitoral.
Nesta quarta (26/01), o candidato do PDT, Ciro Gomes, ensaiou uma escapada pela esquerda diante do congestionamento do centro político provocado por Lula, que também embaraça a ascensão de Moro e pode inviabilizar as pretensões de Dória. Percebendo a impossibilidade de furar a fila nesta disputa, onde Moro tem maiores credenciais, Ciro radicalizou o discurso acenando para um pacote de reformas a ser apresentado nos seis primeiros meses de seu virtual governo e referendado diretamente pelo eleitorado por meio de um plebiscito.
A proposta é ousada e parece se inspirar na saída chilena à crise de 2019, cuja solução plebiscitária instituiu uma constituinte exclusiva, eleita em 2020, que culminou com a vitória de uma nova esquerda, liderada por Gabriel Boric, à Presidência da República no final de 2021, desbancando o até então partido dominante da centro-esquerda (PS).
Ciro parece apostar no desgaste da fórmula centrista do lulopetismo, tardiamente ampliada para acomodar o PSDB histórico num pacto de união nacional para a "reconstrução do país” – sem um programa claramente definido –, mais vocacionado para agradar o Mercado e preparar o terreno para uma virtual governabilidade, que pode incluir também a direita moderada do PSD e até mesmo, por que não, o fisiológico Centrão em posição subalterna.
A proposta já fora insinuada por Dilma no barata-voa político das manifestações populares de junho de 2013, e atacada como aventureira e perigosa em função do exemplo chavista de manipulação plebiscitária. Na conjuntura atual, porém, e depois do exemplo chileno, talvez ela possa ser vista com novos olhos, até por conta da radicalização política estéril da polarização lulobolsonarista e do potencial veto parlamentar às mudanças, tanto política (reforma eleitoral) como econômica (contenção do parasitismo financeiro).
Nem por isso os temores se dissiparão, pois em nossa história, em dois momentos cruciais da crise do Governo João Goulart, um plebiscito realizado em 1963, pelo retorno do presidencialismo, e outro cogitado em 1964, pelas reformas de base, levaram ao colapso institucional ao invés da solução da crise – principalmente, por erros de cálculo dos setores progressistas e inconsistência do programa de reformas.
O principal erro de cálculo nos anos 1960 foi a superestimação da crise e do espírito de luta da classe trabalhadora – à época majoritariamente rural. Quanto ao programa, a proposta do Plano Trienal, costurada por Celso Furtado, foi considerada pelos líderes radicais da época (Brizola, Julião e Prestes) como insuficiente, sem que fosse apresentada qualquer alternativa consistente.
Assim, no pré-1964, a radicalização política do campo progressista, não obstante a retórica, teve mais um caráter de tomada do poder – como José Dirceu tentou reeditar no breve ostracismo petista depois do impeachment de Dilma – do que de mudança estrutural para superar o subdesenvolvimento.
O quadro hoje, naturalmente, é distinto. O Brasil se tornou predominantemente urbano, depois da modernização conservadora acelerada dos anos 1970, e o programa de reformas, embora ainda em debate, assumiu uma clareza e uma consistência significativas, sobretudo no plano econômico (novo-desenvolvimentismo), propiciadas pelas reflexões em torno da era varguista (1930-1964), do regime militar (1964-1984) e do ciclo petista (2003-2016).
Ocorre que, em sentido contrário, as forças progressistas foram, por assim dizer, abduzidas pelo populismo e seu projeto de poder sem propostas efetivas de mudança, que atrai, até aqui, parcelas expressivas do eleitorado.
Diante de tal desencontro histórico, Ciro arrisca um movimento ousado que pode ter desdobramentos também à direita, com Moro e outros candidatos ao centro buscando escapar ao engarrafamento conduzindo suas campanhas mais para a direita, tentando recolher frutos da luta fratricida no interior do bolsonarismo.
A ver em que medida tal estratégia avançará e qual impacto terá num eleitorado até aqui incapaz de olhar para os lados, quanto mais para cima.
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Sobre o autor

Hamilton Garcia

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Formado em Sociologia&Política pela PUC/RJ, fez Mestrado em Ciência Política na Unicamp e Doutorado em História Contemporânea na UFF, se dedicando ao estudo dos partidos de esquerda. Atualmente leciona na UENF disciplinas de Política voltadas para a compreensão dos processos políticos e sua evolução, dos pensamentos que os inspiram, e seus múltiplos desenvolvimentos, levando em conta tanto fatores genéticos (formação histórico-social) como mutacionais (transformações econômico-sociais), além de colaborar com o Blog Opiniões do Grupo Folha da Manhã , o sítio Gramsci e o Brasil , a Fundação Astrojildo Pereira e, a partir de março, o sítio Latinoamérica 21 . Neste blog, pretendo discutir e analisar os fenômenos políticos atuais, ajudando o leitor a, antes de tudo, entendê-los para depois enfrentá-los.