Cândida Albernaz: Tudo pode ser melhor do que parece
Cândida Albernaz - Atualizado em 30/07/2020 19:50
No chão de terra, as bolinhas de vidro colorido rolavam de um lado para o outro obedecendo ao toque dos dedos.
A lata de Bruno estava cheia. Costumava ganhar sempre e nem assim os outros meninos desistiam de enfrentá-lo. Era o melhor deles. Comprou as primeiras bolas de gude no armazém de seu João. Depois de um tempo ganhou tantas, que algumas vezes dava ao Tonico (mas que não contasse aos outros!), já que ele não podia comprar.
Os pais de Tonico morreram quando ele tinha três anos e os avós maternos cuidaram dele. Muitas vezes não tinha o que comer, então o chamava num canto e dava metade do seu pão com salame para ele.
Costumava também protegê-lo dos outros garotos, pois ele mancava e algumas vezes os meninos o perseguiam colocando apelidos que o magoavam.
Com tudo isso, era Deus no céu e ele na terra para o Tonico.
Já o pegara chorando por mais de uma vez, mas na última, proibira que ele chorasse de novo. Não por motivo tão bobo.
— Enfrente os caras. Eles só correm atrás de você porque tem medo. Se precisar, te ajudo.
Não adiantava. Era como se ele achasse que podia menos que os outros. Não era medo, era subserviência. O avô era muito humilde e sempre foi capacho do patrão. O Tonico saiu igual.
Naquela semana seria Natal. Em casa, sua mãe já preparava a pequena árvore feita de galhos secos enfiados num vaso cheio de terra, com bolas vermelhas penduradas em suas pontas, e alguns laços de fita em tons de verde, dourado e vermelho completavam a decoração.
Todos os anos ele e a irmã ajudavam a mãe no preparo. Era motivo de alegria.
Neste ano Tonico batera na porta quando terminavam de colocar os pares de sapatos embaixo da árvore. Ficou olhando extasiado.
— Que cara de bobo é essa, Tonico?
— Está linda!
— Parece que nunca viu uma árvore de Natal antes. Deixa de ser idiota, vamos lá pra fora.
Bruno virou-se e já na rua gritou:
— Não quer ver Tula? Teve os filhotes ontem.
Tonico então disparou porta a fora em direção ao quintal.
A cachorra de pêlo ralo e sem raça definida estava deitada num canto enquanto os filhotes dormiam encostados nela. Eram três, pois um morrera.
— Queria ter um cachorro, mas meus avós implicam.
— Estes, nem pensar, pois já têm dono e vou ficar com um pra mim.
Tonico aproximou-se da cadela que rosnou baixinho. Ele sentou-se no chão:
— Estão todos agarrados na mãe. Viu como ela defende os filhos, Bruno? Mãe é assim, acho que todas.
Bruno saiu andando deixando o amigo ali, envolvido com suas ideias.
Na véspera de Natal soube que Tonico estava de cama. Levara uma surra de uns garotos e caíra sobre uma das pernas torcendo-a, o que o obrigou a ficar de repouso. Foi visitá-lo. Era a primeira vez que entrava na casa dele.
Em cima do estrado com um colchonete, colocado num canto da pequena sala, ele suava e reclamava de dor. A avó do garoto ficou olhando para Bruno enquanto este se aproximava do amigo.
— E aí, cara? Pegaram você de jeito.
— Veio me zoar? Sabe que não consigo ter a mesma velocidade que eles. Eram quatro.
— Que zoar que nada. Fica bom logo porque nós dois vamos pegá-los. Vão apanhar tanto que nunca mais mexem com você.
O sorriso carregado de vaidade tomou conta do rosto de Tonico.
— Nós dois juntos?
— É claro, cara. Vou te ensinar a bater.
— Amanhã não vou poder ir à missa porque minha perna está inchada. Dessa vez não ganho nada mesmo.
— Não posso pegar os presentes que as beatas distribuem na saída da igreja. Elas sabem o nome de todos da lista e não vão me dar o seu.
— É, eu sei. Minha avó não pede, diz que presente é bobagem: “o que importa é barriga cheia. Se ainda dessem comida...”.
— Vou embora, mas antes quero te entregar uma coisa.
Saiu da sala e na porta pegou uma caixinha de papelão.
Tonico levantou o corpo para tentar ver o que era.
Bruno tirou um cachorrinho de dentro da caixa e o colocou no colo de Tonico.
Os olhos do amigo ficaram embaçados.
— Minha avó não vai deixar.
— Combinei com ela. Você pega a comida comigo todo dia e não deixa a sujeira espalhada.
As mãos pequenas acariciavam o pêlo preto e branco, enquanto aproximava o cão do rosto.
— Tenho que colocar um nome nele.
Olhou em volta e viu que Bruno não estava mais ali. Não percebera que ficara muito tempo olhando para o cão no seu colo.
Um sorriso largo animou-lhe o rosto, quando recebeu uma lambida no nariz.

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