Arthur Soffiati - 3/4 de século: as fases de uma vida
* Arthur Soffiati 09/02/2022 14:53 - Atualizado em 09/02/2022 14:54
Nasci no Rio de Janeiro em 10 de fevereiro de 1947. Completo, portanto, 3/4 de século. Estou na reta final de uma vida. Custo a crer que cheguei a essa idade, pois quase todos meus ancestrais dos lados paterno e materno morreram antes de alcançar minha idade. Meu pai, com 62 anos. Minha mãe, com 72 anos. Meus tios, com exceção de um, na casa dos 70. Apenas meu avô paterno e minha avó materna morreram coincidentemente com 90 anos, ambos com algum tipo de demência, o que não deixa de ser uma forma de morte em vida. Os hábitos do tempo deles contribuíam para uma vida mais curta: cigarro, bebida, alimentação inadequada, vida sedentária. A medicina também avançou muito desde então, mantendo vivo que estaria morto.
Nasci na Casa de Saúde São Sebastião, no final da rua Bento Lisboa, em Laranjeiras. Morei menos de um ano no último edifício do Cosme Velho, diante do ponto em que a linha de bonde terminava. O prédio ainda existe hoje e é conhecido como Ferro de Passar. Fui concebido em Santa Maria, Rio Grande do Sul, e, perto de nascer, visitei Parati, na barriga da minha mãe. Seis meses depois do meu nascimento, fui batizado na Igreja Nossa Senhora da Glória, no largo do Machado. Meus avós paternos foram os meus padrinhos.
Logo em seguida, meu pai foi transferido para Campinas, pois era militar e estava sujeito a essas mudanças, tal qual meu avô paterno, também militar. Olhando para trás, entendo que posso dividir minha vida em quatro fases. A primeira estendeu-se do meu nascimento aos 17 anos. A segunda, dos 17 aos 30 anos. A terceira, dos 30 aos 65 anos. E a quarta, dos 65 anos até agora, com 75. Não sei se poderei identificar uma nova fase em minha vida.
Vivi cerca de três anos em Campinas. Pela fotos, minha infância parece ter sido alegre. Eu era um menino muito arrumado em meio a galinhas e aos cachorros Diana e Rebeco. Guardo até hoje apenas duas lembranças da cidade: o automóvel do meu pai e a casa de uma prima de minha mãe, cuja filha roubava meus brinquedos. Ela mesma me chamou no seu quarto para mostrar onde os guardava. No mais, fotos lindíssimas de Serra Negra, estação de águas, das minhas avós e de uma tia, da fantasia de turco que me obrigaram a vestir para um baile infantil de Carnaval e de amiguinhos com quem eu jogava futebol. Voltei a visitar Campinas já bastante adulto. Foi com se eu visitasse a cidade pela primeira vez.
Meu pai foi transferido para Curitiba. Minha mãe estava grávida do meu único irmão. Não lembro da gravidez dela. Da cidade, guardei a lembrança de duas irmãs da minha idade na casa vizinha, uma verdadeira chácara, e dos pais de uma grande amiga de minha mãe. Ele tinha uma fábrica caseira de doces e sempre me presenteava com maria-mole quando eu o visitava. Visitei a casa onde moramos em Curitiba no ano de 2016. Está quase ruindo.
Nascido meu irmão, meu pai foi transferido para Paranaguá, litoral paranaense. Passamos a morar numa grande casa, tendo por vizinhos um sargento com esposa e duas filhas. A diferença entre mim e meu irmão é de três anos e nove meses. Essa diferença me tornava uma criança solitária. Eu brincava sozinho ou com as meninas vizinhas. Não havia redes sociais e brinquedos sofisticados. No máximo, eu assistia às sessões de sábado à tarde num cinema nos fundos da minha casa e inventava meus brinquedos. Lembro bem de Paranaguá, do rio Itiberê, da ilha dos Valadares, do mercado municipal e principalmente da ilha do Mel. Tenho quase concluído um livro de memórias da baía de Paranaguá. Retornei a ela faz pouco tempo. A casa onde morei está interditada por risco de desmoronamento.
De volta ao Rio de Janeiro, voltamos a morar por um ano no prédio do Cosme Velho. Só então, fui matriculado numa escola. Eu já tinha nove anos de idade. Comecei o primeiro ano primário já sabendo ler e escrever fluentemente. O prédio foi construído na margem direita do rio Carioca, do qual me lembro muito bem. Eu gostava de música popular. Aprendia as letras com facilidade. Foi então que começou a primeira grande paixão da minha vida: a música erudita. Minha mãe abandonou a dança e o piano ao se casar. Era muito comum essa renúncia nas mulheres daquele tempo. Para compensar, ela sintonizava o rádio na Ministério da Educação. Ela ouvia para sua satisfação e não para me ensinar. Efetuou-se, então, a magia: o menino passou a gostar daquelas músicas longas e sem letras.
Eu gostava de estudar, de soltar pipa, de jogar bola-de-gude e de futebol. Cursei cinco anos em escolas diferentes. Eu me destacava em português, latim, geografia e história. Adorava desenhar mapas. Aos 16 anos, cheguei à conclusão de que a escola era pouco para mim. Eu queria mais. Por minha conta, aprendi música erudita e me dediquei à leitura que a biblioteca do meu pai permitia. Lia Luís da Câmara Cascudo. Eu queria ser muito coisa. Então, aos 17 anos, mergulhei em profunda confusão mental.

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