Desigualdades de gênero e trabalho doméstico
08/06/2021 11:52 - Atualizado em 08/06/2021 11:53
Tive o prazer de traduzir e agora de publicar o mais novo texto do sociólogo alemão André Kieserling no Frankfurter Allgemeine Zeitung, que saiu em 03.06.2021. Agradeço novamente ao colega Kieserling por ter conseguido autorização do jornal alemão para que eu traduzisse e publicasse seus textos aqui no Brasil. Nesta recente contribuição, o sociólogo de Bielefeld discute pesquisas sobre divisão do trabalho doméstico e desigualdades de gênero. Apresenta argumentos genuinamente sociológicos que refutam exageros moralistas que confundem a existência de desigualdades de gênero em diversas esferas da vida social com a existência de uma estrutura unitária de dominação masculina, comumente chamada de “patriarcado”. Kieserling, em escrita concisa e elegante, nos atualiza a resposta: o patriarcado não existe. Existem, sim, desigualdades de gênero.
Quando seu amor não consegue fazer
André Kieserling
Os ideais de igualdade em questões de distribuição do trabalho doméstico também parecem ter, aparentemente, uma utilidade prática limitada para as mulheres. O pragmatismo domina. Faz-se o que cada um pode fazer melhor. Pesquisas sobre a distribuição do trabalho doméstico mostram que mesmo em casais com uma atitude marcadamente igualitária, a mulher contribui mais do que o homem para o trabalho doméstico, especialmente quando há crianças pequenas para cuidar. Isto é frequentemente citado como prova da desvantagem contínua das mulheres. Se, no entanto, se perguntar como é que os próprios envolvidos vivenciam esta situação, obtém-se respostas, inclusive das mulheres, em que a distinção entre homens e mulheres não desempenha nenhum papel. A explicação feminista da situação não chega, portanto, àqueles a quem se destina. Isto foi novamente demonstrado por um estudo apresentado por Allison Daminger de Harvard.
Em entrevistas separadas, ela perguntou a 32 casais de classe média-alta sobre a relação entre o ideal e a realidade. Verificou-se que o trabalho doméstico foi distribuído de forma desigual em quase todos os casos, e numa clara maioria dos casais, à custa da mulher. A distância em relação à diferenciação clássica de papéis era, no entanto, considerável, pois embora se tratasse quase sempre de uma questão de encargos adicionais para as mulheres, eram praticamente inexistentes os casos em que elas tinham responsabilidade quase exclusiva pelas crianças e pela cozinha. A propósito, a autora não acredita que os seus casais possam ter feito melhor do que fazem, uma vez que também estavam preparados para falar francamente sobre outras imperfeições na sua relação.
Equidade versus eficiência
Além destas desigualdades, outra coisa impressionou na pesquisa: o quão raro essas desigualdades se tornaram objeto de insatisfação permanente ou de tentativas sérias de mudança. A maioria dos casais estava satisfeita com a divisão do trabalho. Também não viram qualquer razão para escolher entre a sua prática e os seus ideais de igualdade. Um segundo conjunto de perguntas foi, portanto, concebido para esclarecer a razão pela qual consideravam as duas coisas compatíveis.
Foram mencionados dois tipos de razões, em primeiro lugar as de eficiência: aqueles que têm horários de trabalho mais curtos e estão, portanto, em casa mais cedo, devem usar a sua vantagem de tempo para adiantar a comida. E em vez de insistir que ambos se revezem para transportar as crianças para a creche, aquele que trabalha nas proximidades deveria fazê-lo por regra. A segunda razão residia na disparidade de habilidades e inabilidades pessoais: havendo visitas pare receber, o melhor cozinheiro deve estar no fogão, e quando se trata de preparativos de férias, a escolha de hotéis e voos não deve ser deixada ao parceiro que sempre comete erros neste assunto. Este segundo ponto em particular está de acordo com os resultados de um estudo mais antigo sobre o assunto realizado pelo sociólogo francês Jean-Claude Kaufmann: quando um cônjuge afirma de forma crível que simplesmente não consegue fazer isto ou aquilo, este argumento costuma ter validade nas relações amorosas.
Porque a explicação feminista não é aceita?
O olhar feminista da autora não deixou de notar que logo depois do trabalho muitos homens não querem ser capazes de fazer o que fazem durante o dia. Já no caminho do escritório para casa muitos homens talentosos em termos organizacionais transformam-se em preguiçosos que ficariam em apuros sem a ajuda firme da sua esposa. Ela também notou que por detrás das limitações estão escolhas desiguais e uma vontade desigual de sacrifício. O horário de trabalho da esposa é mais curto apenas porque ela estava disposta a trabalhar em tempo parcial. Mas também pode haver razões factuais para isto, por exemplo, a perda de rendimento esperada para o conjunto da família.
Mas voltando à questão principal: Porque é que as explicações feministas não são aceitas? Os dois tipos de argumentos podem ser formulados de uma forma tão neutra em termos de gênero que o fardo mais pesado sobre a mulher parece ser uma coincidência. O fardo é mais pesado para a mulher do que para o homem, mas não porque ela é mulher, e sim por outras razões e apenas enquanto estas razões persistem. Os casais compreendem assim o princípio da igualdade da mesma forma que os juristas: não como proibindo as desigualdades, mas como forçando a que estas sejam justificadas com base no mérito do caso, e não no gênero das partes envolvidas.
Esta leitura da situação tem o mérito significativo de impedir que de uma desigualdade específica possa se derivar alguma outra. Assim, a distribuição desigual do trabalho doméstico não funciona como base para o marido se afirmar sobre a esposa em desacordos de opinião ou como fundamento para a distribuição desigual da influência na criação dos filhos ou das prerrogativas decisórias sobre grandes compras. Pelo contrário, tudo isto deve ser reexaminado, questão por questão.
Bibliografia
Allison Daminger, De-gendered Processes, Gendered Outcomes, in: American Sociological Review 85 (2020), p. 806-829; Jean-Claude Kaufmann, Schmutzige Wäsche, Konstanz 1994.

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    Roberto Dutra

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