Cândida Albernaz: Olhar perdido
Cândida Albernaz - Atualizado em 15/10/2020 12:04
— Como está meu tio?
— Vai ficar bem apesar da idade. Setenta e dois anos, não é? Ele parece forte.
A garota que veio com vocês precisa ser operada. O caso dela é delicado.
— Coitada da Alzira. Estava no carona e foi o lado em que o carro bateu. A vida não tem sido fácil pra ela.
— Preciso de alguns dados. Você, o que é da garota?
— Dela, nada.
— Sabe pelo menos o nome completo e a idade?
— Alzira da Silva. Dezoito anos.
— Vocês estavam indo...
— Pra casa do meu tio. Eu ia passar a noite lá. Fomos a Casemiro comprar boi. Eu trabalho com ele na fazenda. O tio tem umas terras perto de São Fidélis. Não está mal de vida, não.
— E a menina, é sobrinha também?
— Não senhora. Que sobrinha, que nada. É mulher dele.
— Sei.
— Eles vivem juntos há três anos.
— ...
— Acha que é muito jovem, né? Que nada. Já está ficando velha pro gosto do tio. Ele nunca fica com elas depois que fazem vinte e três. Mania, sei lá.
— Como se conheceram?
— Como todas as outras. Ele foi casado umas dez vezes, mais ou menos.
A primeira, que era irmã do meu pai, casou com ele quando tinha quinze anos. Morreu aos vinte e cinco no parto. Desde aquela época, não vejo meu tio sozinho.
Mas os casamentos dele não duram muito, não.
— Quantos filhos ele tem?
— Dois, que foram com minha tia. As outras ele não deixa engravidar. Diz que não gosta de mulher buchuda, fica feia.
— Mas Alzira estava grávida.
— Então ela escondeu, porque se o tio descobre, a criança não vinga.
— Perdeu o bebê. Estava com quatro meses.
— Bem que hoje vi quando ele reclamou que ela estava comendo muito e ficando gorda.
— Ele mandaria tirar?
— Claro. Tem um lugar onde o tio leva as garotas. Diz que se elas têm filhos, além da trabalheira, param de ter tempo pra cuidar dele. Fala também que o corpo deixa de ser o mesmo.
— Onde moram os pais de Alzira?
— Numa roça perto daqui. São pobres demais. O pai está desempregado faz tempo. Só a mãe dela é quem trabalha. Cinco filhos, doutora.
— Então seu tio se ofereceu para cuidar deles.
— Isso mesmo. A senhora já conhece a história, né?
Botou os olhos na menina e disse que queria pra ele. Estava casado com outra na época. Mandou a garota de volta pra casa, que nisso ele faz questão: não fica com duas ao mesmo tempo. Depois saiu atrás de convencer os pais de Alzira.
— E a que estava com ele não reclamou? Vai embora e pronto?
— Não é bem assim. Ele continua cuidando dela. Manda dinheiro todo mês. Não é muito, mas também não passa fome. Sempre faz desse jeito.
A família das meninas acaba ficando amiga dele, porque o tio não é de cuspir no prato que comeu.
— Você não está sentindo nada, não é mesmo? Todos os exames feitos deram bons resultados. É só ficar em observação por algumas horas. Amanhã recebe alta.
— Doutora?
— Sim?
— Se meu tio sabe que Alzira mentiu, não fica mais com ela. Tenho pena. De todas as meninas com quem ele amigou, Alzira é a mais triste. Vive pelos cantos com o olhar bem longe.
— Não posso esconder.
— Se ele manda ela de volta com raiva, não vai querer ajudar. E o tempo que ela levou casada pra garantir o futuro da família?
— Vou ver o que posso fazer.
— Faltam poucos anos pra ele dispensar ela.
— Vamos ver.
— Doutora?
— ...
— Meu tio não pode ter mais filho. Um probleminha que teve.
— Mas Alzira estava grávida. Tem certeza?
— Meu, doutora. O bebê devia ser meu. A bobona não contou nada.
— Você e ela...
— Pois é, se meu tio descobre, bota nós dois pra correr ou coisa pior. Dizem que mandou matar um que se engraçou com uma das meninas dele.
— ...
— Ela tem um olhar tão perdido, a gente vivia conversando, daí... Doutora, ele vai desgraçar com nossa vida.

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