Arthur Soffiati: Restingas e manguezais
Arthur Soffiati - Atualizado em 09/10/2020 12:45
Até cerca de 15 mil anos passados, os continentes eram mais amplos porque o nível dos oceanos era mais baixo. Em grande parte, a água estava concentrada em geleiras. Nesse mundo que não existe mais, havia restingas e manguezais. Vamos definir sumariamente os dois ambientes. Restinga não é um ecossistema vegetal, mas uma formação geológica constituída de areia capturada por um sistema rochoso ou hídrico, como o jato de um rio desembocando no mar, por exemplo. Sobre essa extensão arenosa, costumam crescer plantas de diversas espécies e de estaturas variadas. Numa primeira faixa, junto ao mar, a vegetação é mais baixa por conta dos ventos. Mais para o interior, ela costuma adquirir porte arbustivo e arbóreo.
Manguezal é um ecossistema basicamente vegetal que se desenvolve em outro ecossistema: o estuário intertropical. O estuário é formado pela mistura da água doce com a salgada. Encontraremos estuário nos rios da Prata, São Lourenço e Tejo, mas não manguezais neles, porque esses rios desembocam aquém e além dos trópicos.
Além de restingas e manguezais, existiam também, na zona costeira de 15 mil anos passados, ilhas litorâneas, baixios argilosos e arenosos, costões rochosos, falésias e campos salgados. Com o aquecimento global natural do Holoceno, as grandes geleiras derreteram e o nível do mar subiu cerca de 100 metros. Sim, leitor, a elevação do nível do mar é possível. Já aconteceu e pode acontecer novamente. Nós podemos dar uma ajuda para isso aquecendo o planeta e derretendo as grandes geleiras ainda existentes, o que, aliás, já vem acontecendo.
A configuração dos mares e continentes a partir de 5 mil anos criou uma nova linha costeira, redefinindo as ilhas litorâneas, os baixios, os costões rochosos, as falésias, os estuários, as restingas e os campos salinos. Os povos que habitaram primeiramente os ambientes costeiros emersos desenvolveram uma economia de coleta, pesca e caça para fins de subsistência, e não comerciais. Alguns já conheciam a agricultura de subsistência. Portanto, tais ambientes não foram destruídos, já que eram fundamentais para a sobrevivência dessas comunidades. Os povos dos sambaquis revelam com clareza a dimensão de proteção dos ecossistemas sem a necessidade de leis escritas.
Então, os europeus chegam ao continente americano com os vikings. Ainda não havia armas de fogo. Os vikings chegaram a fundar algumas colônias na América do Norte, mas acabaram repelidos pelos povos nativos. Chegaram então os espanhóis e os portugueses com suas doenças, seus canhões e sua economia de mercado. A natureza americana também se tornou um estoque de recursos com fins lucrativos. Os manguezais começaram a ser disputados por pescadores e curtumes. No Rio de Janeiro, no fim do século XVII, os jesuítas cercaram uma enorme área de mangue e privaram a população de extrair madeira. Houve reclamação junto ao rei. Os moradores civis da cidade ganharam o direito de destruir o mangue.
Nos séculos XIX, XX e XXI, a luta entre interesses contrários se acirrou em torno dos manguezais. Pedro Soares Caldeira escreveu brilhantes artigos a respeito dos manguezais da baía da Guanabara em 1884. Hoje, a carcinicultura e a urbanização avançam aceleradas sobre os mangues. As restingas também estão sendo devastadas por atividades rurais e urbanas. Recorro a casos que conheço bem de perto. Primeiramente, a vegetação de grande porte das restingas foi cortada para fornecer lenha e madeira, principalmente lenha. Na área aberta, agricultura e pecuária passaram a ser praticadas. Em alguns pontos, instalaram-se complexos portuários e núcleos urbanos. Pousadas e hotéis ergueram-se nas restingas. A atividade turística cresceu. As leis sempre foram insuficientes para restingas e manguezais num mundo em que as leis se distanciam das práticas.
O governo brasileiro reconhece a existência de seis biomas em suas fronteiras. A WWF/Brasil reconhece sete. Além dos grandes biomas, a organização internacional inclui a Zona Costeira como bioma. Faz sentido. A vegetação de restinga pode provir dos biomas da Amazônia, da Mata Atlântica e dos Campos do Sul. Os manguezais não são provenientes desses três biomas. Eles vêm navegando. Embora dependam dos nutrientes transportados pelos rios que descem desses três biomas, eles apresentam especificidade. O mesmo pode ser aplicado às ilhas costeiras, aos costões rochosos, às falésias, às restingas e aos campos salgados (marismas).
A Zona Costeira não é bem protegida nem pelo nosso sofrível Código Florestal nem pela Lei da Mata Atlântica, como se esperaria desta segunda, já que se entende a Zona Costeira como parte da Mata Atlântica. Daí a complementação representada pelas Resoluções Conama 302 e 303, agora revogadas pela boiada do ministro Ricardo Salles. Que diferença em Salles e Paulo Nogueira Neto! Enquanto o primeiro assume de forma anacrônica o desmonte da frágil estrutura de proteção ambiental, Paulo Nogueira Neto iniciou sua construção em pela ditadura militar. Diplomas infralegais são frágeis. A Zona Costeira merece uma lei para sua proteção. Mas só ela não basta. Os empresários que se esforçam em se descolar da destruição da Amazônia deviam fazer o mesmo com a Zona Costeira.

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