Sérgio Arruda de Moura: Literatura e reclusão
Sérgio Arruda de Moura - Atualizado em 30/07/2020 20:00
Procurando na literatura formas romanescas inusitadas e criadoras em que algum escritor desenvolveu fatos-verdade com valor de ficção, eis que encontro "O diário de Anne Frank". Devo confessar: me empolgou e me surpreendeu.
Não se trata de um romance, mas de um diário mesmo, o que o retira do campo da ficção. Mas, em contrapartida, pelo interesse que o diário desperta e continua despertando em várias frentes, sendo o principal um singelo quadro dos horrores da Segunda Guerra, o texto acaba por ficar em uma situação privilegiada e se acomoda no campo memorialístico e outros valores a serem avaliados.
Mas, o que esse diário de uma adolescente tem de tão extraordinário? E por que o lemos com sabor de literatura?
É que a literatura, ou a linguagem feita literatura, tem os seus procedimentos. Escrito pela alemã de origem judaica Annelies Marie Frank entre os seus 13 e 15 anos de idade (1942-43), o diário é, como todos, uma espécie de livro de memórias produzido no mesmo compasso dos eventos narrados. De meros exercícios de escrita de uma menina solitária e entediada, refugiada com a família em um esconderijo, o Anexo Secreto, na Amsterdam ocupada daqueles dois anos pelas forças e opressão nazistas, “O diário de Anne Frank” figura nas estantes das livrarias ao lado de autores célebres como um dos livros mais vendidos e festejados de todos os tempos. Essa proeza não se deve tanto aos fatos narrados, os horrores da guerra que ainda hoje atormentam os corações e mentes, mas também ao manejo verbal de uma menina quando argumenta solitariamente entre pensamentos e sentimentos complexos envolvendo sua relação com a existência, com a família, a mãe especialmente, e com o seu crush, o também judeu Peter.
O diário de Anne Frank se fazia no calor dos eventos, como anotações cotidianas de uma garota enclausurada, a mesma que experimentara uma vida com escola, namoricos, amizades, passeios e idas frequentes ao cinema. Contudo, no Anexo Secreto, o noticiário vindo lá de fora pelas ondas da BBC davam conta de muito pouca coisa que indicasse o fim da guerra com a derrota do nazismo. Isolados do mundo de junho de 1942 até o fatídico 4 de agosto quando foram capturados e deportados para diferentes campos de concentração, o sonho da curiosa menina que queria ser jornalista e escritora tem fim pouco tempo depois, morta junto com a irmã Margot, de tifo.
Também o seu diário tem uma história, além de ter valor como autêntico documento memorialístico. Ao ouvir também no rádio que todo escrito poderia servir como testemunho da opressão durante a ocupação nazista, ela resolveu organizar os seus, retirando o que não importasse, também com vistas a uma publicação integral. Os originais nas duas versões (a A, original, e a B, editada pela própria Anne) foram guardados e entregues a Otto Frank, o único que escapou vivo. Mais tarde, ele liberou a versão original para publicação, retirando as passagens em que ela é extremamente crítica com os pais e as surpreendentes passagens em que a garota descreve as transformações genitais pelas quais passava, incluindo o que já sabia sobre gravidez e as dores do parto. Manteve também os pseudônimos para os demais envolvidos nas suas histórias. Em uma edição definitiva publicada já no fim do século, nenhuma passagem ou identidade foi omitida, o que ficou conhecida com versão C.
A narrativa do diário “sustenta a tensão de um romance bem escrito”, como assim avaliou o dramaturgo americano Meyer Levin, que se encarregou da publicação do “Diário” nos estados Unidos. E ele tem razão, ou melhor, uma visão também impressionista do valor literário que tem o “Diário”. À parte o caráter ficcional que caracteriza a literatura, muitos dos grandes livros da humanidade, mesmo baseados em fatos reais, assumem um valor que os transcende, e assim ressurgem na sua ilusão de artefato de linguagem. Posso dizer que literatura é o que resta da linguagem quando abstraímos os fatos-verdade. Essa impressão me foi criada quando li tanto “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, relato jornalístico imparcial de uma guerra, e “O filho eterno”, de Cristóvão Tezza, espécie de diário-ficção do pai-autor do protagonista do romance. A literatura tem os seus procedimentos tanto de dentro quanto de fora dela.
Por fim, no isolamento de uma quarentena que se mantém sem sabermos quando terminará, ou se terminará, como exatamente uma guerra, fico fazendo devaneios e me solidarizando com Anne Frank, procurando ler e escrever para manter a esperança.

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