Artigo: STF resguardou a Constituição. Mudanças vêm do Parlamento
10/11/2019 14:24 - Atualizado em 10/11/2019 14:25

Sobrevivência da democracia

Ulysses promulga Constituição de 1988
Ulysses promulga Constituição de 1988 / Divulgação
“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. (...) Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada”, Ulysses Guimarães (1916-1992), no discurso de promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Em um país dividido, sobretudo desde a eleição presidencial de 2014, não é fácil emitir uma opinião sem ser taxado por ser de “direita” ou “esquerda” — para não dizer “fascista” ou “comunista”. Entre aspas porque, muitas vezes, quem faz juízo de valor sobre seu “viés ideológico”, expressão entre as mais usadas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), sequer sabe do que está falando. O equilíbrio perdeu espaço. E não foi de agora, mas essa guerra de narrativas, com cada um se achando o dono da verdade nas redes sociais, faz parecer que a situação está bem pior. E isso não é “mérito” do Bolsonaro, como alguns podem interpretar. Nasce a partir do “nós contra eles” propagado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
E foi Lula o nome mais comentado nas redes sociais dos últimos dias, sobretudo após o Supremo Tribunal Federal (STF), na última quinta-feira, mudar o entendimento sobre o cumprimento da pena em segunda instância e, com isso, ele ser solto, após 580 dias de cadeia, na sexta. Em mais uma decisão apertada, por 6 a 5, a Corte entendeu que o cumprimento da pena só pode ser iniciado após o trânsito em julgado da ação. Ou seja, depois de esgotada a absurda infinidade de possibilidades de recursos no judiciário brasileiro.
Isso não quer dizer que todos serão soltos, como os antipetistas querem fazer crer no tribunal das redes sociais. As prisões cautelares, comuns em casos como os de crimes hediondos ou em qualquer outra situação prevista em lei em que a Justiça vê risco à sociedade ou continuidade do crime, não são afetadas. Exemplos, entre os políticos, o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral e o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, ambos do MDB.
Lula foi condenado pelo então juiz federal Sérgio Moro (hoje ministro da Justiça), que era responsável pela Lava Jato em primeira instância, no conhecido caso do tríplex do Guarujá. Ainda que com mudanças na pena, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) e a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) mantiveram a decisão do juiz de piso e declararam o ex-presidente culpado. Por mais que o conjunto de provas possa ser considerado frágil (e aqui é bom abrir este parêntese para expressar que a opinião é fundamentada em experiências jornalísticas, não em conhecimento técnico na área do Direito), seria dar crédito a teorias da conspiração acreditar em um conluio envolvendo todas as instâncias. Isso sem contar que Lula é réu em outros processos. Entre eles o do sítio de Atibaia, no qual as provas contra o ex-presidente parecem mais robustas e de fácil entendimento popular. Inclusive, ele já foi até condenado em primeira instância. Só que o TRF-4 vai analisar, dia 27, se a ação deve ou não voltar para a fase das alegações finais, anulando a sentença, já que o STF decidiu, em outubro, que o réu delatado, nesse caso o Lula, não pode fazer sua defesa final junto com o réu delator, que foi, no caso, o Léo Pinheiro, ex-executivo da OAS.
Posto que o objetivo não é inocentar Lula, dá para afirmar que a decisão do STF foi a que se esperava dos guardiões da Constituição. Não cabe à Corte atender clamores populares, mas fazer valer as regras do jogo. É absurdo que o Brasil, com sua infinidade de recursos, tenha no texto constitucional que o cumprimento da pena só começa após o trânsito em julgado da ação. Por mais que precise ser revisto, como parece ser a vontade do povo, não cabe aos ministros do Supremo essa decisão. A função é do Poder Legislativo, dos representantes eleitos no voto, por meio de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição).
Se houve erro em toda essa celeuma, ao que parece ocorreu quando o STF mudou o entendimento sobre a execução da pena em 2016. Naquele julgamento, que terminou em 7 a 4, os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli votaram a favor da prisão após a segunda instância. A mudança dos dois levou ao novo placar e, consequentemente, ao novo entendimento. No art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal, o texto é transparente: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Não há espaço para interpretação divergente. O que tem de acontecer — é bom repetir — é a mudança por meio de uma PEC, embora a discussão agora, entre juristas, seja se esse caso não é considerado cláusula pétrea da Constituição.
Lula é um detalhe de luxo nesse contexto. Imaginar que a sua densidade não influenciou a decisão dos ministros é inocência. Mas a análise do STF deve girar sobre o quão cristalino é o texto constitucional e o quanto ele tem de ser respeitado. As consequências disso em outras esferas, que não a jurídica, é outra discussão.
Livre, Lula é o nome da esquerda que vai se contrapor a Bolsonaro no debate nacional. E não é fácil fazer oposição ao presidente, uma vez que os filhos dele — Flávio, Carlos e Eduardo — já fazem esse papel há algum tempo com tanto esmero. O petista, em liberdade, ocupa um espaço da esquerda, popular, que nenhum político conseguiu tomar nos 580 dias em que ele esteve na cadeia. Eleitoralmente, até para Bolsonaro é bom Lula estar solto. O atual presidente, como mostram as pesquisas, vem perdendo popularidade. Foi no antipetismo, personificado no ex-presidente Lula, que Bolsonaro cresceu e chegou à presidência da República.
Bolsonaro estava sem ter com quem “brigar” politicamente, a não ser nos seus devaneios com a imprensa, sobretudo com a Globo (Lula também coloca culpa por sua prisão no mesmo grupo de comunicação). Como a maioria dos políticos se coloca como “perseguido” pela imprensa quando a notícia não é do seu interesse, o discurso começava a esvaziar. Sobrava a Bolsonaro tentar apagar os incêndios criados pelos seus filhos. Agora ele terá Lula para debater e usar os velhos chavões que agradam boa parte do seu eleitorado.
A decisão do STF de resguardar a Constituição é também um recado ímpar, sobretudo em um período nebuloso no qual deputado federal, filho de presidente da República, evoca a possibilidade de um novo AI-5 — e ainda tem quem relativize. Não quer dizer que o texto constitucional esteja perfeito e não precise ser revisto. Pelo contrário, ressalte-se outra vez, é extremamente necessário, mas respeitando a independência entre os poderes, um dos pilares da República. Esse dever é do Legislativo, não do Judiciário. Cumprir a Constituição é garantir a democracia. Já dizia Ulysses Guimarães, lá em 1988, ao promulgar a Carta: “Traidor da Constituição é traidor da pátria. (...) A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”.
Publicado neste domingo (10) na Folha da Manhã

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    Arnaldo Neto

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