Dois de Fevereiro
02/02/2017 12:21 - Atualizado em 19/05/2020 14:33
Faz um tempo que já não acreditava em deus. Fora devota de Santo Antônio e São José. Dessas de fazer promessas mirabolantes como caminhar 100 quilômetros a pé ou distribuir 50.0000 folhinhas com orações do santo. Levava a sério suas promessas. Tratava os virtuoso com respeito e admiração. Nunca colocara um santo de cabeça para baixo ou dentro do congelador. Reservava apenas para si penitências astronômicas e por muitas vezes, dolorosas, física ou financeiramente. Tudo que pedira, fora realizado. E a cada nova promessa, aumentava o número de folhinhas para o devoto e dificuldade da penitência a ser cumprida.
Um dia, sem explicação, num movimento rápido e seco como são as notícias inesperadas que mudam o rumo das vidas, ela acordou não acreditando mais em deus e nos santos. Acordou sem fé. Arrumou as gavetas e o armário. Jogou fora todos os santinhos. Resquícios de promessas atendidas no passado. Levou todas as imagens que tinha para a igreja de São José. Tinha uma respeitável coleção de imagens. Um oratório para cada santo dispostos lado a lado num aparador de 4 metros e meio. São Francisco de Assis, São Benedito, São José, Nossa Senhora Aparecida e Santa Teresa reinavam na antessala que agora parecia abandonada. 
O mar estava calmo, a casa arrumada, os filhos encaminhados, o marido feliz no emprego. Aparentemente, tudo na mais perfeita harmonia e organização. Como ela sempre sonhara e até então não havia conseguido. Sempre lhe faltava algum detalhe para alcançar o tão sonhado equilíbrio na vida familiar. O marido ser promovido, o filho decidir pelo curso do vestibular, o dinheiro para comprar aquele sofá igualzinho ao da novela.
Mas como disse, agora, nada lhe faltava. A vida estava enfim do jeito que ela planejara. Era motivo para ir a igreja, agradecer aos santos, mandar rodar 5000.0000 santinhos de cada santo de devoção. Mas o invés disso, ela acordou descrente. O sofá estava comprado, o filho inscrito na faculdade de medicina e o marido recém promovido a gerente do setor. Mas ela acordara cética. Saiu de casa cedo para trabalhar, dentro do ônibus passou pela igreja da Candelária, e pela primeira vez desde a primeira comunhão, não fez o sinal da cruz. Não bateu na madeira quando uma colega de trabalho disse que o salário poderia atrasar naquele mês. Não rezou para agradecer pelo almoço daquele dia. Histórias de fé não a comoviam mais. Nem na sorte de um cílio caído na maçã do rosto ela acreditava. E assim, descrente, foi levando a vida. Sem dar explicações sobre essa mudança repentina de comportamento. Talvez porque não houvesse explicações a dar. Sua fé se mostrava exatamente igual ao ceticismo. Sem uma lógica que pudesse elucidá-la.
O filho agora clinica em consultório próprio. O sofá já fora trocado por um modelo de couro caramelo. O marido estava prestes a aposentar. E ela continuava descrente. Pegou um ônibus para o centro da cidade. Era Dois de Fevereiro e isso não lhe dizia muita coisa. Desceu próximo ao cais do porto e cruzou por uma procissão de devotos, filhos de santo e curiosos. Todos saldando a rainha do mar. De repente, ela se viu rodeada de um azul celeste que ornamentava o céu, as roupas, os barquinhos da procissão, as contas do colar da menina, o mar. O mar da Baía de Guanabara, bem próximo a Praça XV, na concentração das barcas, aquele mar escuro, preto de dejetos e esgoto lançados, sujo de óleo das embarcações, estava inacreditavelmente azul. E lindo. 
Foi naquele instante, brusco e inesperado, assim como os instantes em que nos apaixonamos, que ela se enamorou por Iemanjá. Não virou devota, não retomou sua fé. Continuou cética com a vida, com os santos, com os deuses e orixás. Não comprovou imagens da rainha, não fez Bori, nem oferenda. Nunca lhe fez uma prece. Mas todo Dois de Fevereiro ela não abre mão de ir junto ao mar e molhar os pés nas águas celestes ou escuras da Baía de Guanabara.

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    Sobre o autor

    Mariana Luiza

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