Um Conto de Duas Cidades
Mariana Luiza 22/01/2017 01:21 - Atualizado em 19/05/2020 11:23
"Se a morte é o remédio da natureza para todos os males, por que não o seria para a legislação?" escreveu Charles Dieckens
Aconteceu assim. No dia 5 de janeiro, numa região de nobre da cidade. Um dos velhos que jogavam conversa fora na praça afirmou ter testemunhado ali mesmo, há poucos dias, a execução do prisioneiro. A mão que atentou contra o chefe de estado fora a primeira ser queimada. Em seguida, fizeram-lhe feridas com um punhal por todo corpo. Pequenos rasgos nos braços, peito e pernas. Com a ferida aberta e o sangue exposto, derramaram azeite fervente misturado a chumbo derretido, resina, cera e enxofre. Quatro cavalos, cada um amarrado aos braços e pernas do delinquente correram em direções opostas finalizando a penalidade com esquartejamento. Uma enorme platéia cercava a praça. Uma multidão de damas distintas e elegantes se contorcendo na ponta dos sapatos de cetim para assistir ao espetáculo. Mesmo tendo perdido as pernas e um braço, o homem ainda respirava. E podia-se ouvir alguns urros de torcida à espera do último suspiro.
Alguns dias antes, 258 anos depois, cinco jovens voltavam de uma festa, na Zona Sul do Rio de Janeiro, quando foram abordados por uma blitz da PM. O delito era um pouco mais brando do que a tentativa de assassinar o monarca Luiz XV. Um dos meninos estava sem capacete. Era madrugada de natal e o encontro natalício resultou em um relato de tortura. Os policiais, eram oito no total, incineraram o cabelo de um dos jovens com um isqueiro, e usaram o mesmo objeto acendedor para esquentar as lâminas de suas facas. Com as facas quentes, fizeram pequenos rasgos nos braços e pernas dos meninos e queimaram o saco escrotal de um dos adolescentes. Os jovens ainda foram espancados com socos no nariz e pontapés e obrigados a praticar sexo oral uns nos outros enquanto um policial filmava a cena. Não havia platéia para este espetáculo. Nem a cavalaria da PM para completar o esquartejamento. Mas o vídeo, objeto futuro de entretenimento, foi gravado com som ambiente de risadas e xingamentos dos protagonistas da tortura. Há poucos meses deste episódio, também no Rio de Janeiro, dois meninos se estapearam pelas ruas da Gávea. Policiais abordaram os meninos e sem perguntar o motivo da briga, apontaram-lhe armas ordenando que se ajoelhassem. Já dominados, um homem da plateia invadiu o palco tornando-se coadjuvante do espetáculo ao chutar as costas de um dos meninos. A pequena multidão, tal qual a da antiga Place de Grève, vociferavam raivosos frases do tipo "mata, mata, pode matar", "tem que bater mesmo" e "isso é raça ruim”" como se a eliminação dos dois rapazes pretos, que brigavam por causa desconhecida, fosse a solução das mazelas de violência que a cidade enfrenta diariamente.
Consciência ou não, no mesmo 5 de Janeiro, há exatos 259 anos daquele atentado em Paris, a revista Carta Capital publicou uma matéria em que comparava a concentração de riquezas do mundo contemporâneo com a da Inglaterra de Charles Dickens e a França de Victor Hugo. Embora eu ainda me esforce a acreditar que estamos progredindo, diariamente me confronto com violências medievais. Sejam elas praticadas nas ruas, nas mídias sociais ou no Congresso Nacional. Às vezes me sinto num Conto de Duas Cidades.

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