Bíblia nas escolas é projeto de lei em Campos
Hevertton Luna - Atualizado em 28/06/2025 08:34
Pastor Marcos Elias
Pastor Marcos Elias
Começou a tramitar na Câmara Municipal de Campos o Projeto de Lei nº 0146/2025, de autoria do vereador Pastor Marcos Elias (PODE), que propõe a utilização da Bíblia como recurso paradidático nas escolas públicas e privadas do município. A proposta foi apresentada na sessão desta terça-feira (24).
O texto do projeto afirma que a medida "não se trata de atividade confessional ou evangelizadora, mas de uma proposta educacional, cultural e interdisciplinar, plenamente compatível com o princípio da laicidade do Estado e com os valores constitucionais da liberdade de crença, pensamento e expressão".
Segundo o autor, o objetivo não é promover o ensino religioso. "A Bíblia é um livro lido, estudado e conhecido por várias religiões e denominações. Por isso, é importante valorizá-la como um recurso para pesquisas escolares. Não se trata de evangelização", explicou o vereador.
Membro da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e ex-secretário municipal de Educação, o vereador Marcelo Feres (PDT) destacou que a proposta ainda passará pelas comissões e poderá receber emendas.
"Sobre esse olhar, não teria nada de mais, a possibilidade de fazer uso que não tenha a dimensão de proselitismo, de indução religiosa em si, e sim como livro paradidático para apoio, do ponto de vista histórico, cultural, geográfico" ponderou Marcelo.
Questionado sobre a inclusão de outras obras religiosas, Marcos Elias respondeu: "Deixando claro que a gente não está proibindo nenhuma outra prática, nenhuma outra leitura de algum outro livro. O projeto não é esse, mas de apresentar e dar um destaque para a Bíblia, que é o que fala de Deus. E, principalmente no nosso município, que na grande maioria são cristãos, não são todos protestantes, mas a grande maioria cristão".
Apesar disso, a proposta tem gerado críticas de especialistas. O teólogo e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Fabio Py, alertou para o risco de imposição de uma visão religiosa hegemônica.
"Há um processo de unificação, de massificação de uma leitura, de uma forma de enxergar os elementos religiosos e da vida. Isso é um problema muito sério. Temos um universo de intervenção muito direta de uma religião específica, o cristianismo, sobre o universo escolar.", avaliou Py.
A secretária municipal de Educação, Ciência e Tecnologia, Tânia Alberto relembrou das competências sobre as diretrizes e bases da educação nacional.
"Na perspectiva pedagógica, a laicidade brasileira já permite trabalhar em sala de aula o respeito a todas as religiões, sem o privilégio de uma em detrimento da outra.", afirmou Tânia.
"É claro que por princípio, a educação sempre se propõe a fomentar uma sociedade mais inclusiva, uma sociedade que busque harmonia, sobretudo, entre as pessoas, como princípio de desenvolvimento humano.No entanto, há de se considerar também que diferentes setores da sociedade têm visões pró ou contra determinada perspectiva de sociedade", complementou Feres.
Alunos da rede municipal de Campos
Alunos da rede municipal de Campos / Secom Campos
Foi uma luta histórica ter um estado laico
Dados do Censo 2022 mostram que Campos apresenta hoje maior pluralidade religiosa. O número de católicos caiu de 51% para 43%, enquanto os evangélicos cresceram de 31% para 37%. Juntos, os dois grupos somam cerca de 80% da população. Os espíritas representam aproximadamente 2%. As religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, que não pontuaram no censo de 2010, agora aparecem com 0,7%. Pessoas sem religião somam 13,5%, e outras crenças, 3,5%.
Luane Bento, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) Campos e pesquisadora de Relações Raciais, criticou a lei.
"Estão propondo para a educação um processo de hierarquização, que quer dizer que existe um grupo que tem mais valor social, moral do que o outro.", disse Luane.
Já Adriano Moura, doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), questionou "fazer da Bíblia leitura paradidática obrigatória implica privilegiar uma religião em detrimento de outras, o que viola um princípio constitucional. É inadmissível que numa cidade com tantos problemas como Campos dos Goytacazes, sem transporte público, com escolas em péssimas condições estruturais, saúde precária, profissionais mal remunerados, sem biblioteca pública, vereadores estejam se metendo num setor que desconhecem, de forma oportunista e arbitrária".
"As religiões de matrizes africanas, que é uma pluralidade enorme, elas não professam uma fé que está baseada no livro escrito, e sim na oralidade. Quando você coloca a Bíblia, que geralmente são de grupos religiosos que vão professar essa fé baseado no livro escrito, você também está dizendo, olha, o reconhecimento dos saberes, do valor, da cultura, é de quem professa essa fé.", frisou a professora da UFF.
"Escola é lugar de ciência”, concluiu o literato Adriano.
Constituição defende escola para todos
A Carta Magna de 1988 no artigo 5º (incisos VI e VIII) e 19 (inciso I) proíbe a imposição religiosa por parte do Estado, mesmo não proibindo a abordagem educacional e facultativa de conteúdos religiosos enquanto elementos culturais e históricos.
Doutora em Sociologia Política e especialista em Direito Público, Sana Gimenes, salienta que "por mais que o projeto fale que tal uso se dará de forma laica, crítica e interdisciplinar e que a participação dos alunos nessas atividades será facultativa, tendo em vista a liberdade de crença, sabemos da agenda religiosa e conservadora que está por trás desse debate".
O jurista João Paulo Granja defende que outros livros sagrados sejam utilizados. "O uso de um livro religioso como a Bíblia (cristãos), Talmude (judaísmo), Alcorão (mulçumanos) como fonte "paradidática"pode ser útil para compreensão das sociedades e culturas permeadas pelos valores éticos e morais de determinadas religiões." complementou o João Paulo.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em seu artigo 33, garante o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil.
"De todo modo, o projeto de lei ainda é flagrantemente inconstitucional, pois usurpa da União o papel de legislar sobre matéria submetida", defendeu Sana.
"Fomentar o uso de apenas um livro de determinada tradição religiosa parece acotovelar o princípio da laicidade estatal (art. 19, I da CRFB/1988).", finalizou Granja.

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