*Edgar Vianna de Andrade
- Atualizado em 07/05/2025 12:16
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A partir de “Pauliceia desvairada”, de 1922, Mário de Andrade empenhou-se no ambicioso processo de atualizar a cultura erudita brasileira de acordo com as tendências em voga na Europa e a construir formas de expressão baseadas na cultura popular brasileira, que já se diferenciava da cultura portuguesa desde o período colonial. A cultura erudita do Brasil não retrava a realidade nacional. Para tanto, naquele momento, impunha-se a necessidade de buscar unidade cultural. Essa foi a grande preocupação de Mário. Hoje, ele é criticado por não ter reconhecido a diversidade cultural num país imenso como o Brasil.
A crítica é anacrônica porque não reconhece as questões que se colocavam nos anos de 1920/30. As duas viagens que Mário empreendeu em 1927 (à Amazônia) e 1928 (ao Nordeste) suscitaram nele a questão da diversidade. Qual realidade cultural é a do Brasil? Rio de Janeiro, São Paulo, Nordeste ou Amazônia? Ou todas batidas num liquidificador? Foi o que ele pretendeu em “Macunaíma”. Os críticos do Modernismo devem aceitar essa realidade, assim como se espera que, futuramente, reconheçam-se as preocupações culturais da atualidade.
Essa introdução pareceu necessária para analisar o filme “Mário de Andrade, o turista aprendiz”, dirigido e roteirizado por Murilo Salles. O diretor tem 74 anos e já devia ter cultivado a desconfiança. Ele foi diretor de fotografia de vários filmes brasileiros. Sabe trabalhar com a câmara, com o preto-e-branco, com a cor. Para “Mário de Andrade”, ele escolheu combinar fotografia em preto-e-branco e em cores, com fotos tiradas pelo próprio Mário na sua viagem pela Amazônia, além de filmes antigos. Quanto ao roteiro, ele optou por uma combinação entre o relato de Mário e uma discussão sobre a visão do modernista pelo prisma das questões atuais. O resultado foi a combinação de drama e documentário. Narra-se tanto parte da viagem como utilizam-se as considerações que Mário fez diante daquele mundo aquático ensolarado, quente e tão excessivo para ele.
Essas escolhas tornam o filme confuso e desinteressante para o público, geralmente leigo quanto à cultura erudita brasileira. Um roteiro linear expresso em preto-e-branco teria um caráter bem mais pedagógico. Seria bem mais atraente, aos olhos deste crítico, mostrar Mário na ilha do Mosqueiro, em Marajó, em Belém, em Manaus, em Remate de Males, em Iquitos, em Humaitá com Sérgio Olindense, em Porto Velho e numa ponta da Bolívia.
Não podiam ficar de fora as considerações de Mário sobre urbanismo adaptado aos trópicos, desmatamento da Amazônia, seu amor pelos animais, seu encantamento com as borboletas e com um lago de Manaus, suas impressões quanto à beleza dos indígenas e mestiços, seus encontros com intelectuais da Amazônia, o calor, o lago de Arari.
Não cabia, em 1927, discutir a origem negra de Mário, algo que ele procurava ocultar, nem a contradição da milionária Olívia Guedes Penteado, que patrocinava a expedição ao lado de Mário, de sua sobrinha e da filha de Tarsila do Amaral. Olívia enriqueceu-se com o café e era uma mecenas, reunindo artistas e intelectuais em seus salões. É completamente fora da realidade a declaração inicial e pública de Mário sobre a contradição dela ao ser milionária e marxista. Olívia nunca foi marxista. Não há o menor cabimento em Mário manifestar interesse sexual por Olívia, nem a discussão dela, nua, com um intelectual francês em seu quarto dentro do navio. Não cabia também o assédio de homens às duas moças em espaço público enquanto Mário tocava piano. Idem para o encontro de Mário com as duas moças se oferecendo para ele. Desejo sexual poderia haver, mas nunca explícito ou manifestado por escrito.
Trata-se de um filme a cair no esquecimento sem a expectativa de que um livro tão rico volte a ser inspiração para o cinema.