Folha Letras - Leituras em 2024: os estrangeiros
- Atualizado em 07/05/2025 12:13
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Suponho que, em breve, a literatura perderá o suporte da pátria e do papel. Sempre existirão características locais a serem retratadas na ficção, mas a globalização do mundo tende a aproximar os contextos asiáticos, africanos, americanos e europeus. Talvez no chamado sul global os contextos se mostrem mais semelhantes que no norte global.

Leio muitos livros impressos em papel. Tenho dificuldade de me sentar diante de um computador para ler um e-book. Só mesmo por necessidade, fico frente a uma tela. Preciso segurar o livro, folhear suas páginas, fazer anotações a lápis (jamais a caneta) e sentir o cheiro do papel (de preferência antigo).

No presente artigo, comento as leituras de livros estrangeiros feitas em 2024, retratando países em que se fala e se escreve o português (mesmo com suas feições locais), livros hispano-americanos recentes, livros de países africanos em línguas não-portuguesas e livros de países asiáticos. Todos eles devidamente traduzidos para o português do Brasil, claro, que não sou poliglota.

Se não li a obra toda de Eça de Queiroz, li o principal dela. Mas só em 2024, decidi ler “A cidade e as serras”, seu último livro. Ele morreu durante sua revisão. Consegui um exemplar da primeira edição, publicada em 1901, pela Editora Chardron, do Porto.

De tão falado, eu já conhecia o enredo no geral. Jacintho de Thormes, o personagem principal, vive na artificialidade de Paris, numa excelente morada, cercado de criadagem, atendido por pedicure, contando com uma vasta biblioteca, frequentando salões nobres e ricos, indo a restaurantes finos e... cansado daquela vida. Solteirão, ele pode retratar parte do próprio Eça no fim da existência: um vencido pela vida. Seu amigo o convence a voltar às origens, em sua casa, no interior de Portugal. Tudo muda. Sua saúde melhora com o ar puro da montanha, com o silêncio do ambiente, com a simplicidade dos camponeses e... com uma linda moça, pela qual se apaixona e com a qual casa, sem nunca mais querer viver numa grande cidade.

Alguns consideram o romance como um dos primeiros manifestos ecológicos. Na segunda metade do século XIX, o pensamento ambiental ainda era incipiente, mas várias pessoas, sobretudo intelectuais, estavam já cansadas das cidades e queriam viver na roça. É um romance grande e um grande romance enaltecido por muitos. Creio não ter mais dívida com Eça.
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José Eduardo Agualusa nasceu em Angola, mas reside em Moçambique. Nem sei mais se reside mesmo, já que viaja muito. Em 2024, ele publicou “Mestre dos batuques” (São Paulo: Planeta do Brasil), um livro escrito em tom palatável ao leitor africano mais exigente, mas também acessível a leitores do mundo todo. Ele trata do encontro de um militar angolano que serve na tropa de dominação colonial portuguesa com uma moçambicana negra, filha de homem rico. O militar nasceu no interior do país. É amigo de chefes guerreiros de etnias que repudiam o domínio luso. Um deles, é mestre em batuques capazes de curar e de adormecer.

Com esses batuques sagrados, ele pode adormecer o inimigo, como faz com as tropas portuguesas que invadem o interior do país para ampliar seu domínio. Agualusa transita em Portugal, Brasil e África, mostrando seu domínio da literatura desses três mundos. Não se trata apenas de uma história de amor e de guerra vivida por algumas pessoas numa geração, mas que atravessa o tempo e chega aos nossos dias.

Já Mia Couto, branco nascido em Moçambique e biólogo de formação, parece se repetir em sua abordagem mítica da realidade. “A cegueira do rio” (São Paulo: Companhia das Letras, 2024) é um romance passado na Primeira Guerra Mundial em território africano. O que ele mostra é o contraste entre a visão racionalista do ocidente e a visão mágica dos povos africanos. O contraste seria o mesmo, caso o romance transcorresse na Oceania, na Sibéria ou na América em tempos pretéritos. A visão xamanista do mundo ainda perdura em vários lugares. A visão cartesiana é uma exceção. Mia Couto busca valorizar a visão mágica africana. Mas, nessa busca, acaba se repetindo. Talvez a repetição seja característica desse mundo mítico.

Obrigado a isolar-se por conta da pandemia de Covid-19, o colombiano Éfren Giraldo dedicou-se a escrever considerações sobre a beleza do mundo vegetal. O resultado dessa mistura de ensaio e diário foi “Sumário de plantas oficiosas: um ensaio sobre a memória da flora” (São Paulo: Fósforo, 2023). Giraldo divaga sobre os vegetais, sobre os herbários famosos. Sobre o mundo encantado de Gonzalo Fernández de Oviedo, de Lineu, de Emily Dickinson, de Emanuele Coccia e de outros tantos. A Colômbia talvez seja a região americana que primeiro contou com um botânico a empregar a nomenclatura binária de Lineu. Trata-se do holandês Nikolaus Joseph Freiherr von Jacquin(1727–1817). O livro de Giraldo foi premiado. De fato, as plantas exercem papel fundamental para a vida. As divagações do colombiano, contudo, carecem de maior direcionamento.
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“Dengue boy” (Rio de Janeiro: Amarcord, 2024), do argentino Michel Nieva, é uma distopia cyberpunk, ou seja,uma ficção científica que transcorre no futuro dominado por tecnologia e caos urbano.As mudanças climáticas alcançam 90°C e derretem os polos. Grandes cidades estão agora submersas nos dois hemisférios. Por mais que o contexto humano esteja planetarizado, os autores de distopias não ousam passar muito do contexto territorial conhecido. É assim com “Não verás país nenhum”, de Ignacio de Loyola Brandão, ainda a maior distopia escrita na América Latina. O contexto em que Nieva ambienta sua distopia situa-se no ano de 2272: “... foi em 2197 que os gelos antárticos derreteram todos de uma vez, e quando o mar subiu em níveis jamais vistos, a Patagônia, região outrora famosa por suas florestas, lagos e geleiras, transformou-se numa trilha desconexa de pequenas ilhotas em chamas.”

Foi nesse contexto que nasceu o dengue boy. Havia discussão sobre sua origem: ou foi um mosquito mutante que matou o marido e engravidou a mulher ou foi um mosquito mutante que picou o homem e alterou seu DNA. Ao engravidar, a mulher deu à luz um menino- mosquito que chupava o sangue das pessoas, dando preferência a integrantes da elite financeira. Trata-se de um “romance” criativo e divertido.

Uma mulher ressuscita e volta à sua casa. Seu marido ainda vive e sua neta querida a recebe com saudades. Tudo acontece numa pequena cidade, o melhor ambiente para uma história fantástica. Todos se espantam. O padre do local desaparece. Hilda Bustamante, o nome da ressuscitada, volta a integrar o grupo de amigas. Mas ela está diferente. Não parece uma viva de verdade. Os elementos do livro “A segunda vinda de Hilda Bustamante” (Belo Horizonte: Autêntica Contemporânea, 2024), da argentina Salomé Esper, são bons, mas não bastam. É preciso conduzi-los bem até que, como Lázaro, ela volte à sepultura e deixe indeléveis saudades em sua querida neta. Érico Veríssimo tratou com mestria o tema da ressurreição em “Incidente em Antares”. Deve-se considerar que a escritora ainda é pata nova para dar mergulho fundo.

Depois de viver mais de 15 anos no exterior aprimorando-se em biologia, o homem retorna a sua cidade natal, pequena e pobre. Em vez de trabalhar numa grande universidade, o professor tem de aceitar um emprego temporário, ganhando mal, num internato feminino. Assim é o começo de “O diabo das províncias” (São Paulo: DBA, 2024), do colombiano, Juan Cárdenas. No cotidiano provinciano, ele não é valorizado. O ambiente a sua volta é cheio de mudanças e mistérios. Suas alunas aparecem grávidas enquanto outras desaparecem. O biólogo ainda tem um encontro com seu perturbador passado. Não se trata de uma trama espetacular, mas de um livro legível com certa desenvoltura.

Em 2023, conheci a literatura de Selva Almada lendo “Não é um rio” (São Paulo: Todavia, 2021). Não pude concordar com as palavras elogiosas publicadas na orelha do livro. Tentando se destacar no realismo mágico, que conta com nomes famosos, a jovem escritora argentina parece ter voo de galinha. Mas sou leigo em literatura. Considero-me apenas um leitor compulsivo e talvez privilegiado por esta compulsão. Em “O vento que arrasa” (São Paulo: Todavia, 2024), seu novo livro, ela parece mais certeira que no livro anterior. Interior da Argentina (supõe-se). Paisagem árida. Um pastor protestante e sua filha num automóvel que apresenta defeito. O passado dele não é dos melhores. Um posto de combustível no meio do nada cujo dono trabalha sozinho, contando apenas com o auxílio eventual de um menino abandonado pela mãe. O pai é o dono do posto.

Obrigado a pernoitar no posto para o longo conserto do veículo, trava-se diálogo entre um crente convicto e um leigo sem muita convicção. O desejo do pastor é transformar o menino em grande pregador. Pastor e filha vêm do nada e partem para o nada depois de forte chuva. Fim.
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Scholastique Mukasonga, escritora ruandesa, tornou-se mundialmente conhecida com “A mulher de pés descalços”, ambientado na guerra civil de Ruanda, guerra que resultou no genocídio do povo tutsi. Com “Kibogo subiu ao céu” (São Paulo: Nós, 2024), a escritora nos mostra uma Ruanda antes da independência e da guerra, ainda sob domínio colonial belga. Missionários cristãos tentam impor o monoteísmo num contexto tradicional cuja visão é mágica. Essa visão tem explicação para fenômenos que a ciência interpretaria de outro modo: “Bweramvura abandonou a colina, abandonou por inteiro Ruanda e o sol voltou ainda mais escaldante para ressecar todos os campos. Esperamos a grande chuva, aquela que chamamos de Zina, ela veio como se estivesse com ódio e descarregou granizo e raios e foi embora assim que se satisfez com a grande devastação causada.” As marcas da aculturação já avançam.

“O perfume das flores à noite” (Rio de Janeiro: Harper Collins, 2024), da marroquina Leïla Slimane, mostra uma escritora já bastante familiarizada com a literatura ocidental. Este romance é quase um relato. A autora é convidada a passar uma noite no museu Punta della Dogana, em Veneza. Ela menciona muitos autores bastante conhecidos da literatura ocidental, como também certos chavões já muito batidos. Escreve que escrita é disciplina, renúncia à felicidade e às alegrias cotidianas. Sim, é disciplina, mas pode trazer felicidade e alegria para o escritor e o leitor. Os temas escolhem o autor, escreve ela. Bobagem de uma escritora jovem, que tem apenas 44 anos. O autor não apenas escolhe o tema, como o constrói. O tema parece até alusão à comédia do cinema norte-americano: “Uma noite no museu”. Há mais de uma referência a ele.

Finalmente, Han Kang, sul coreana vencedora do Nobel de literatura em 2024. Dela, li “A vegetariana” (São Paulo: Devir, 2013) e “O livro branco” (São Paulo: Todavia, 2023). O primeiro representa bem a literatura dramática da Coreia do Sul atualmente. Ele narra a vida sofrida de uma vegetariana discriminada pela família, pelo marido e pela sociedade. São três novelas que se conectam. Há uma crítica ao mundo capitalista da carne e um desfecho dramático para quem ousa enfrentá-lo. O segundo reúne reflexões sobre o branco, a cor do luto em países do extremo oriente, o luto de sua irmã, o leite materno, a fralda, a neve. Nos dois livros, contudo, não encontrei substância para a autora merecer o Nobel. Ou este prêmio ganhou um caráter imprevisível.

*Professor, escritor, historiador e ambientalista

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