O Conselheiro José Fernandes e o médico Walter Siqueira cruzaram o meu caminho em 24 de agosto de 2024. Coisas da literatura. Foi durante a minha posse na Academia Campista de Letras, quando manda a tradição que se faça um discurso sobre o patrono da cadeira e o seu mais recente ocupante. É um ritual bonito que dá sentido à ideia de imortalidade, pois justamente ocorre quando os novos reverenciam a memória daqueles de gerações passadas ou contemporâneos de maior trajetória.
O patrono é um desses gigantes que nos guiam dos céus. No caso da cadeira 22, que assumi, trata-se de José Fernandes da Costa Pereira Júnior, o Conselheiro José Fernandes, que nasceu em nossa Campos dos Goytacazes no dia 20 de janeiro de 1833 e faleceu no Rio de Janeiro, no dia 10 de dezembro de 1899. Com apenas 23 anos, muito novo para os padrões da época, formou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo em 1856. Político muito influente, foi presidente das províncias do Espírito Santo, entre 1861 e 1863; do Ceará, no ano de 1871; de São Paulo, nos anos de 1871 e 1872; e do Rio Grande do Sul, ainda em 1872. Em seguida foi eleito Deputado Geral como representante do Espírito Santo, nosso estado irmão aqui ao lado, cargo para o qual se reelegeu por algumas vezes no período que vai de 1872 a 1889, portanto até a Proclamação da República.
Foi ainda conselheiro do Império e ministro da agricultura no gabinete presidido pelo Visconde do Rio Branco. Foi partidário da abolição da escravatura e bastante preocupado com a agricultura e as questões do campo. Em Campos, dá nome de uma importante rua central e, no Espírito Santo, onde é ainda mais lembrado em razão dos seus feitos para a então província, dá nome à principal praça do Centro Histórico da capital Vitória, onde foi inaugurado um monumento em sua homenagem.
Temos então um campista que ganhou o país e fez pouso mais duradouro em terras capixabas. E temos o contrário com o ocupante mais recente da cadeira 22, um capixaba que fez de Campos dos Goytacazes o seu pouso, seu porto, seu ninho. É uma vaga que traz, portanto, a marca da integração entre estes dois estados.
O médico e escritor Walter Siqueira, por ora licenciado da academia e para quem emanamos as melhores energias pelo seu restabelecimento, nasceu em São João de Muqui, como dito no Espírito Santo, em 15 de outubro de 1929. Em 1955 formou-se pela Faculdade Fluminense de Medicina, instituição que está nas origens da Universidade Federal Fluminense. Muito atuante no meio literário campista, além da nossa ACL, tem passagens pela União brasileira de Trovadores, pela União Brasileira de Escritores, pela Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, pela Associação Internacional de Escritores, pela nossa Academia Pedralva Letras e Artes, e pela Academia Madalenense de Letras.
Como registrou em artigo recente, aqui na Folha da Manhã, o acadêmico Welligton Paes, também médico e o maior guardião da produção literária campista, Siqueira tem uma trajetória profissional de imensa contribuição comunitária, tendo chefiado o Serviço de Endemias Rurais, a chefia da Clínica de Otorrinolaringologia da Beneficência Portuguesa, e a chefia da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública, a Sucam. Poeta, trovador, cronista, publicou vários livros em parceria com os colegas Sebastião Siqueira e com o próprio Welligton Paes.
Mas, para além dos protocolos formais que registram essas trajetórias, que me chamaram a atenção por essas confluências entre capixabas e fluminenses, gostaria de deixar guardado em discurso aquilo que de melhor um escritor pode oferecer: a sua produção literária. E para eles escrevi uma croniquinha, chamada “Como vais?”, que diz assim:
Como vais? Numa dobra temporal na BR 101 que nos une e nos separa, aconteceu de um político daqui passar distraído por um médico de lá. Um vindo de Muqui. Outro saindo da terra goitacá. A distância de um século entre um e outro não impediu que um sopro imaginário de conversa se desse fantasticamente, em murmúrios esparsos que vagavam pelas cabeças de um e de outro.
O primeiro a perceber foi o médico. Trafegava com prudência em carro austero pelas imediações de Morro do Coco em tarde de inverno solar. Os campos espelhavam a luz esverdeada e aqui e acolá viam-se reses, capelas, estradinhas de chão, caveiras de boi espetadas nas porteiras, crianças indo para a escola. O sussurro veio sem assustar, quase que, ao contrário, como uma carícia.
— Walter, meu caro, como vais?
O médico sorriu familiarizado com a voz que conhecia e não conhecia. E a recebeu de fato como se fosse um afago de um velho amigo. Então, à vontade por estar sozinho e não se passar por louco, seguiu com a conversa:
— Estou bem, José, e você? — dando-se conta de que, sem saber como, sabia o nome do desconhecido que lhe era conhecido.
— Labutando aqui na política. Como são cabeças-duras esses nossos governantes, não? Veja você que muitos aqui na minha época ainda não entendem a necessidade de abolirmos a escravidão.
— Aqui na minha época também não, meu caro. Há saudosos da escravidão até hoje. As cabeças continuam bem duras. E olha que sou otorrino e de cabeça entendo bem.
— Não é possível, Walter! Como pode ser?
— A escravidão, que você combateu aí, anda hoje por aqui sobre motos nas entregas rápidas, nas contas das mercearias de fazenda, nos alojamentos podres, nos porões de costureiras, nos elevadores de serviço, nos quartinhos de empregada.
— O que você me diz, Walter, então de nada adiantou a nossa luta?
— Não é que não tenha adiantado, José, é que a luta é tinhosa. A luta não para.
Deu-se então que o político, aposentado há um século, percebeu que mesmo do além deveria ajudar. O céu não é licença eterna para quem tem compromisso com os seus, e decidiu que continuaria a frequentar conversas imaginárias de certas figuras da República para que tomassem vergonha na cara e abolissem de fato a escravidão.
Minutos depois, distante dali coisa de mil e duzentos quilômetros, na Capital Federal, o excelentíssimo senhor ministro do Trabalho estava em sala acarpetada, sentado à mesa solene de madeira histórica, sob quadros, bustos e bandeiras, quando uma voz que conhecia e desconhecia passou pela sua cabeça.
— Ministro, meu caro, como vais?
* Jornalista, escritor e professor universitário. Texto adaptado do discurso de posse na Academia Campista de Letras.