Folha Letras - Quem faz samba não morre
- Atualizado em 12/02/2025 09:03
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Adriano Moura*
Batista nasceu vinte e cinco anos depois da abolição da escravatura, em Campos dos Goytacazes. A música era, desde sua infância e juventude, ingrediente para que a vida, mais do que uma passagem, fosse uma travessia que o levaria a lugares e pessoas inimagináveis. Começou tocando triângulo, na banda musical chefiada pelo pai, seu Ovídio. O prédio da Lira de Apolo, no centro da cidade, assistiu aos primeiros ritmos do Orfeu negro, que tantas paixões e desafetos provocaria por seu talento.

Assim que se mudou para o Rio, Batista começou a frequentar o bairro mais boêmio da cidade: a Lapa efervescente dos malandros. Não demorou para que logo incorporasse o figurino típico, ornado de terno e chapéu branco, navalha no bolso e o olhar irresistível que arrastaria muitos corações femininos pelas ruas, becos e camas. Quando conheceu Margarida, enamorou-se de primeira. Ela era uma mulher ciumenta, que não aceitava as piscadas do seu homem para as musas que desfilavam suas coxas pelos corredores do Bar Esquina do Pecado. Ela sabia que o malandro era um pecador nato, sem a menor preocupação em não ir para o paraíso desde que, na terra, pudesse comer todas as maçãs que lhe fossem ofertadas. Mas era a música a grande paixão de Batista.

Ele estava certo de que todo homem carregava uma cruz na estrada da vida e que a dele, naquele momento, era a mulher. E não é que tal sentimento lhe inspirou a compor um primeiro samba? “Na estrada da vida” desvirginou o jovem malandro no concorrido universo dos sambistas cariocas. Não demorou para que trocasse Margarida por Rosa. Quanto ao trabalho, Batista se dizia um vadio por inclinação.

“Vadio? Sim. Mas por que não? Trabalhar feito um cão pra ganhar um miserê. Ponho meu lenço no pescoço, meu chapéu de lado, arrasto meu tamanco, navalha no bolso porque malandro não pode dar mole. Sigo desafiando, provocando quem me atravessa o caminho e vou compondo meus sambas-canção. Tenho orgulho de ser um sambista malandro. Ou um malandro sambista?”

Uma coisa ou outra, não demorou para que o compositor ganhasse fama de rapaz folgado, por causa de outro sambista, chamado Noel, branco de classe média, que desistiu da medicina para se dedicar ao samba. Achava que Batista deveria deixar chapéu, tamanco e navalha de lado, parar de ser malandro que, segundo ele, tirava o valor do sambista. Dizia que o povo civilizado em vez de chamar Batista de malandro, deveria mesmo era tratá-lo de rapaz folgado.

Como malandro que é malandro não leva desaforo para casa, Batista não se furtou ao revide, cantando um recado para seu opositor a quem chamou de “mocinho da Vila”, já que Noel era de Vila Isabel, outro bairro também boêmio do subúrbio carioca. Cantou que Noel falava muito de violão e outros fricotes, enquanto ele tinha orgulho de ser rapaz, malandro e capaz.

Noel gostava de cantar sua Vila Isabel, lugar com nome de princesa e que dizia possuir um feitiço sem vela e sem farofa, bairro onde o samba fazia dançar os galhos do arvoredo e a lua nascer mais cedo. Mas Batista sofria da síndrome de Tomé. Precisava ver para crer. Foi lá e constatou que tudo não passava de conversa fiada de Noel, que o samba da Vila, que achou bem tranquila, não tinha nenhum feitiço. Esperou... esperou... esperou... os galhos dos arvoredos não se mexeram nem a lua nasceu mais cedo. Conversa fiada mesmo!

Como optou pela boa vadiagem, se recusando a trabalhar formalmente, Batista precisava viver de sua música. Teve então a ideia de recorrer a uma prática muito comum dentre os sambistas da época: vender letras de sambas e fazer parcerias artísticas e comerciais. Com seu parceiro Erasmo, formou a Dupla Verde e Amarelo. Fez tanto sucesso que integrou uma orquestra argentina que o levou para Buenos Aires, onde se apresentou por três meses.

Com o tempo e a repressão, a verve malandra das letras de Batista foi perdendo espaço. O governo passou a proibir a exaltação da malandragem. Havia um soldado chamado Peçanha que tinha obsessão por prender os malandros, principalmente os do morro. E o sambista era um dos seus alvos prediletos. Foi preso por vadiagem, acusado de fumar erva do norte dentre outras façanhas e perambular pelas mesas de baralho. Por isso, muitas vezes, desceu Batista o morro, igual seu amigo Chico Brito, nas mãos do Peçanha. Mas malandro se vira. Passava uma noite na cadeia e no dia seguinte já estava de volta às ruas compondo, cantando, dançando e vadiando.

Um dos bailes de carnaval mais famosos do Rio de Janeiro ocorria no Teatro João Caetano. A festa era palco de famosos travestis da Lapa. Batista tinha trânsito livre em meio a toda gente marginalizada da cidade. Não seria diferente com aqueles centauros urbanos, seres híbridos, ameaça de muitos casamentos, que na solidão das madrugadas das vielas escuras do Centro satisfaziam o desejo de homens em cujas mãos, às vezes, cintilavam as alianças denotando que alguma mulher esperava solitária nos lençóis do casamento o retorno do marido saciado pelo despudor e brilho das perucas e seios postiços.

O Rio de Janeiro já era uma cidade bastante perigosa. Uma noite, o sambista estava sentado em sua cama, compondo um samba antes de dormir, quando ouviu um barulho estranho dentro de sua casa. Lançou mão de seu inseparável canivete e caminhou lentamente até a sala tateando o escuro. Ao acender a luz, deparou-se com um estranho a vasculhar as suas coisas. Era um ladrão.

“O senhor invadiu a casa errada. Se quiser, posso te compor um samba, você vende, diz que é de minha autoria, assim talvez consiga algum dinheiro às minhas custas”. O bandido reconheceu logo que tinha entrado na residência do famoso compositor de grandes sucessos os quais se habituara a ouvir nas rádios da cidade e nas rodas de samba dos botequins. Batista então lhe serviu uma boa pinga. Levou o homem até a porta e apontou-lhe duas casas. “Ali mora um empresário rico, naquela outra um ator famoso cheio da grana. Acho que em uma das duas você terá mais sorte”. O bandido foi embora cantarolando “Acertei no milhar”.

Mesmo tendo feito sucesso nos bares, palcos e rádios da cidade maravilhosa, Batista foi sendo esquecido com o tempo. Vivia o dia como se não houvesse amanhã, mas sempre havia. Dizia que era assim e quem quisesse gostar dele que o aceitasse como era, que morreria sem hipocrisias nem arrependimentos, pois sabia que, além de flores, nada mais levaria no caixão. Tinha um coração grande, tão grande que parou de bater deixando seu corpo inerte, sozinho e... pobre, esquecido. A cardiomiopatia e o abandono mataram o malandro.

Dizem que, na porta do céu, o anjo responsável pela ficha corrida dos candidatos ao paraíso tentou barrá-lo, perguntando se ele se arrependera da vida que tinha levado. Então Batista deu meia volta, ajeitou o lenço no pescoço, o chapéu na cabeça e desceu das nuvens cantando: “Eu sou assim, quem quiser gostar de mim eu sou assim” e voltou para a Lapa onde, até os dias de hoje, inspira os amantes do samba que passam por lá. Afinal quem faz samba não morre.

*Primeiro Vice-presidente da ACL.

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