Alimentos e legumes para consumo humano.
/
Agência Brasil
Quem nunca viu, ao transitar pela cidade, a distribuição de quentinhas ou sopões às pessoas em situação de rua? Em Campos dos Goytacazes existem muitos grupos desse tipo: as Freiras do Jardim São Benedito, como são conhecidas as irmãs do Mosteiro da Santa Face e do Puríssimo e Doloroso Coração de Maria; ações da Liga Espírita; trabalhos de igrejas evangélicas que reúnem fé e visam diminuir a fome, entre outros. Há quem pense que a fome não chegue a constituir um grande problema para quem mora nas cidades, mesmo em situação de vulnerabilidade. Mas a verdade é que quem depende da caridade alheia não tem certeza de que vá comer no dia seguinte. Esse é, em termos práticos, o significado do conceito de insegurança alimentar e nutricional, e é com base nele que a fome é tratada no campo das políticas públicas.
A política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) envolve uma agenda que reúne diferentes atores — da sociedade, das igrejas, do mercado e do poder público. Muita gente ainda acredita que a SAN trata só de combater a fome, mas, na verdade, vai muito além: é uma política transversal, que atravessa várias áreas ao mesmo tempo. Na saúde, os conselhos de SAN atuam para promover alimentação adequada e prevenir doenças relacionadas à desnutrição e ao consumo excessivo de industrializados e ultraprocessados. Na educação, abordam o debate sobre a alimentação escolar e a inclusão de alimentos da agricultura familiar. Na assistência social, ajudam a combater a insegurança alimentar, articulando programas de distribuição de alimentos e fortalecendo redes de solidariedade e transferência de renda. Na agricultura, incentivam práticas sustentáveis, apoiam a agricultura familiar e abrem espaço para a agroecologia como alternativa à produção em larga escala que usa agrotóxicos.
Nos conselhos, a comunidade pode expor problemas, propor soluções e acompanhar de perto como os recursos públicos estão sendo utilizados. Mesmo com limitações, os conselhos favorecem maior transparência e controle social e ainda constituem um canal que pode dar voz a quem vive diariamente os impactos da insegurança alimentar, da falta de serviços públicos ou dos efeitos da degradação ambiental. Toda pessoa pode assistir às reuniões do conselho, mas para exercer voto nas assembleias é necessário associar-se por meio de instituições, que são eleitas para representar movimentos, associações ou coletivos, como movimentos de população em situação de rua, coletivos de catadores, cozinhas solidárias, abrigos ou iniciativas de alimentação comunitária e ainda organizações de base ou pastorais sociais (como a Pastoral do Povo de Rua).
Como pesquisadora do tema desde a graduação, consegui reunir dados sobre o funcionamento dessas instâncias participativas. Em Campos dos Goytacazes-RJ, em 2019, dos 513 conselheiros do município, 17,9% ocupavam cadeiras em mais de um conselho ao mesmo tempo. No Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional — COMSEA Campos —, dos 31 representantes titulares ou suplentes, 52% estavam em mais de um conselho municipal. Na análise de atas das assembleias durante o período de 2015 a 2019, verificou-se que o termo “alimentação” esteve presente nos quatros conselhos: saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional. Esses dados evidenciam o elo da política SAN com as demais.
Na minha dissertação de mestrado, em 2022, analisei os conselhos no nível estadual, no Rio de Janeiro, e pude verificar que, diferentemente do cenário campista, os conselheiros estaduais não conseguiam transitar por mais de um conselho — provavelmente devido à maior distância geográfica entre eles na capital. No entanto, as discussões dos temas relacionados à segurança alimentar e nutricional perpassam as atas, o que enfatiza a capilaridade dessa política.
Em 2023, com a retomada do conselho em nível nacional (Consea), a ampliação do Bolsa Família e novos programas voltados à agricultura familiar, o Brasil melhorou sua condição e conseguiu, em 2025, sair do chamado Mapa da Fome. Trata-se de um documento da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) que indica os países em que mais de 2,5% da população sofre subalimentação crônica. O Brasil tinha saído desse mapa em 2015, mas voltou em 2022 e finalmente conseguiu sair novamente neste ano.
O histórico de entrada e saída nesse mapa está intimamente ligado à participação social, pois por ela temas de interesse de grupos com menos força política são pautados na agenda pública. Por isso, valorizar e fortalecer os conselhos participativos é investir em cidadania e em qualidade de vida. Tais espaços mostram que as políticas públicas ganham mais força quando construídas coletivamente, ouvindo a sociedade e articulando diferentes áreas.
Professora e bacharel em Administração Pública, doutoranda em Sociologia Política pela UENF e pesquisadora assistente do Observatório das Metrópoles - Núcleo Norte Fluminense.
Dia do professor abre o debate sobre a excelência educacional.
/
Tânia Rego/Agência Brasil
Estamos no mês em que se comemora o Dia dos Professores, agentes centrais na operacionalização das políticas públicas de educação. Entretanto, diferentemente de outras áreas, nem sempre a expertise desses profissionais é devidamente considerada no planejamento e na elaboração dessas políticas.É consenso que a educação constitui um campo estratégico para o desenvolvimento de qualquer sociedade que aspire ao progresso. No entanto, em um país de dimensões continentais como o Brasil, os desafios relacionados ao acesso, à permanência e ao êxito escolar permanecem expressivos.
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Educação Básica de 2025, existem no país 179.286 escolas, onde atuam 2.367.777 docentes, responsáveis pela formação de 47.088.922 estudantes. São números vultosos, proporcionais às dimensões do território nacional. Contudo, para fins desta reflexão, detenho-me em um aspecto específico dessa equação: a prática docente — ou, em outras palavras, a forma como as políticas educacionais consideram, valorizam e integram o professor em sua formulação e execução.
Sob uma perspectiva macro, houve avanços significativos na educação básica brasileira, que compreende a educação infantil (zero a cinco anos), o ensino fundamental (seis a 14 anos) e o ensino médio (15 a 17 anos), sendo obrigatória a escolarização dos cinco aos 17 anos. Segundo os dados do Anuário, o percentual de crianças de zero a três anos matriculadas em instituições de ensino alcançou 41,2%. Em 2024, a taxa de matrícula de crianças de seis a dez anos nos anos iniciais do ensino fundamental manteve-se em 93,3%, e a dos adolescentes de 11 a 14 anos nos anos finais atingiu 97,6%, praticamente universalizada. Já o índice de jovens de 15 a 17 anos matriculados no ensino médio foi de 82,8%.
Ainda assim, persistem desafios estruturais importantes. O país não atingiu a meta de 50% de matrículas na educação infantil, estabelecida pelo Plano Nacional de Educação (PNE) para 2024. No ensino fundamental, apenas 37,2% dos alunos do 5º ano da rede pública apresentaram aprendizagem adequada em Língua Portuguesa e Matemática, e, no 9º ano, apenas 13,3% alcançaram esse patamar. O ensino médio continua a ser a etapa mais crítica, com altos índices de evasão e baixos níveis de aprendizagem, refletindo desigualdades e deficiências históricas.
Parte da solução desse quadro passa, necessariamente, pela valorização e ressignificação da atividade docente. É imprescindível que se ouçam os professores, indo além de parcerias com o setor privado que, muitas vezes, encara a educação não como um direito social, conforme disposto na Constituição Federal de 1988 e consolidado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996), mas como um mercado de oportunidades.
A experiência internacional demonstra outros caminhos possíveis. De acordo com a pesquisadora Inger Enkvist, em seu livro A boa e a má educação: exemplos internacionais, de 2020, a docência é uma carreira altamente valorizada em países que são referências em escolarização de sua população. Na Finlândia, a profissão atrai jovens talentosos e ambiciosos, que veem no magistério uma atividade socialmente respeitada e intelectualmente recompensadora. Em países asiáticos, embora o período de formação seja mais curto, o domínio do conteúdo é rigoroso, e o acesso à profissão é extremamente competitivo (Enkvist, 2020).
Esses contextos contrastam fortemente com a realidade brasileira. Aqui, no discurso público, há um consenso retórico em torno da valorização do professor, mas, na prática, o cenário é de desrespeito, precarização e desvalorização simbólica. Não são raras notícias sobre violações de direitos trabalhistas, assédios institucionais, violências verbais e físicas — cometidas por gestores, pais e alunos —, além de condições de trabalho que dificultam o exercício pleno da profissão. Essas situações desconsideram o investimento intelectual, financeiro e emocional dedicado à prática docente. Por que isso ocorre? Por que os melhores talentos não se interessam pela docência?
Essas perguntas precisam ser enfrentadas de modo franco e estruturado. As respostas certamente indicarão caminhos possíveis para a reversão dos baixos índices de aprendizagem e para a revalorização do magistério, condição indispensável ao fortalecimento da educação básica e, por consequência, do próprio projeto de sociedade que desejamos construir.
Ana Carla de Oliveira Pinheiro é doutora em Sociologia Política pela Uenf, professora formadora da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc), vice-líder do Lader (Laboratório de Políticas Públicas, Governação e Desenvolvimento Regional, da UFF) e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles
EBC / TV Brasil
A educação inclusiva é um direito previsto em lei, mas, em Campos dos Goytacazes, sua implementação ainda enfrenta desafios estruturais e pedagógicos significativos. Segundo o Censo Escolar de 2024, levantamento feito anualmente pelo Ministério da Educação (MEC), a rede municipal de Campos conta com 2.546 matrículas de alunos de educação especial, distribuídas em 206 escolas no município. Esses números mostram que receber alunos com necessidades especiais não é apenas uma preocupação do futuro, mas uma realidade presente que exige atenção imediata.
Atender esses alunos vai muito além de garantir a matrícula. Esse é apenas o primeiro passo da inclusão. É preciso uma infraestrutura escolar adequada e profissionais de apoio capacitados para acompanhar de perto o processo de aprendizagem dessas crianças, garantindo que elas tenham oportunidades reais de desenvolvimento.
Sobre o primeiro tema, a infraestrutura, os dados do Censo Escolar revelam lacunas preocupantes. Das 206 escolas da rede municipal, apenas 42 contam com salas de recurso multifuncionais, espaços fundamentais para oferecer atendimento educacional especializado. Essas salas permitem que alunos com necessidades especiais recebam acompanhamento individualizado e utilizem recursos pedagógicos adaptados, condição essencial para que possam aprender de forma efetiva.
Além disso, apenas 28 escolas da rede municipal dispõem de material pedagógico adaptado para a educação especial. Isso significa que a grande maioria dos alunos com necessidades educativas específicas não tem acesso a recursos adequados, fundamentais para seu aprendizado. Ou seja, não têm livros, jogos, tecnologia assistiva e outros recursos que facilitam a aprendizagem. Sem esses materiais, os estudantes dependem muitas vezes da criatividade e do esforço extra dos professores, o que amplia desigualdades dentro da própria rede de ensino.
Não é incomum que os professores da educação especial na rede municipal precisem se desdobrar para criar seus próprios materiais didáticos, diante da escassez de recursos disponíveis. Os dados não deixam dúvidas: a oferta de equipamentos e recursos pedagógicos é insuficiente para atender às necessidades dos alunos. É preciso reconhecer que esses profissionais desempenham um papel fundamental na inclusão, muitas vezes indo muito além do que lhes é exigido. Mas, como diz o ditado, “uma andorinha sozinha não faz verão”. A sobrecarga limita as oportunidades de aprendizado, pois os docentes precisam lidar com turmas heterogêneas e uma rotina marcada por excesso de responsabilidades e apoio insuficiente.
A situação se agrava ainda mais pela falta de formação continuada e capacitação específica. O número de professores temporários na rede é expressivo, e muitos desses profissionais que passam a atuar no atendimento especializado não recebem treinamento adequado para lidar com diferentes tipos de deficiência. Isso é especialmente preocupante em um município que possui instituições históricas voltadas à prática pedagógica e à defesa da educação de qualidade — há potencial humano para oferecer capacitação, mas ele nem sempre é plenamente aproveitado.
A verdadeira inclusão exige mais do que matrículas ou promessas de campanha eleitoral. É necessário um olhar atento às condições reais de ensino e aprendizagem, um compromisso com a formação de professores e o fornecimento de recursos adequados. Campos dos Goytacazes tem o desafio — e a oportunidade — de se tornar referência em educação inclusiva, garantindo que cada aluno, independentemente de suas necessidades, possa exercer plenamente o direito à educação e à cidadania. Transformar a lei em prática concreta não é apenas uma obrigação legal do governo municipal, mas um passo fundamental para o desenvolvimento social e econômico da região.
Ana Beatriz Xavier é doutoranda em Sociologia Política pela UENF, pesquisadora assistente do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e tutora de apoio para alunos com necessidades educacionais especiais na fundação Cecierj.
Comunidade da Margem da Linha, em Campos dos Goytacazes
/
Caterine Reginensi, 2017
O tema da adaptação das nossas cidades às mudanças climáticas vem sendo bastante abordado em pesquisas e trabalhos acadêmicos. Em agosto, tive a oportunidade de participar da banca examinadora da dissertação de mestrado em Políticas Sociais de Débora Rodrigues, orientada pelo professor Marcos Pedlowski, da Uenf, sobre potencialidades e entraves para realizar o processo de adaptação climática em Campos. E muito em breve, dia 30 de outubro, teremos, também na Uenf, a oficina local do projeto nacional “Instrumentos de Política Urbana na perspectiva da Adaptação Climática”, promovida pelo INCT Observatório das Metrópoles em parceria com o Ministério das Cidades.
Embora este seja um tema amplamente relevante, percebe-se uma profunda desconexão, por parte dos agentes públicos, com a compreensão de que os eventos climáticos extremos (como enchentes e secas severas) irão intensificar problemas estruturais já existentes e criar novos. Um dado do trabalho de Débora Rodrigues, cuja leitura recomendo fortemente, chama a atenção. Segundo o Índice de Desenvolvimento Sustentável das Cidades Brasileiras, a pontuação atribuída a Campos dos Goytacazes com referência aos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) criados pela ONU foi de 51 (em uma escala que vai de 0 até 100). Não destoa da média fluminense nem da brasileira, mas, no contexto dos repasses de royalties e participações especiais — foram R$ 725 milhões em 2024 — isso não deve servir de consolo. É particularmente preocupante o baixo nível dos investimentos per capita em infraestrutura urbana, expressos no Objetivo 9 — “Indústria, Inovação e Infraestrutura”.
Um destaque positivo se refere ao ODS 13, sobre políticas de preparação das cidades para as mudanças climáticas. Neste quesito, o desempenho de Campos atinge 83 pontos, refletindo a boa avaliação no item específico “proporção de domicílios em área de risco” (nos demais indicadores dentro do ODS 13 o desempenho é preocupante). Para quem acompanha o desenvolvimento da malha urbana de Campos, esse indicador não chega a surpreender, pois entre 1999 e 2015 foram entregues à população cerca de 8,5 mil moradias populares. A maior parte veio de programas municipais como o Morar Feliz, mas também tivemos o programa federal Minha Casa, Minha Vida.
Para além de firmar um pacto político-eleitoral com as populações atendidas, tinha-se colateralmente manifesto o objetivo de desfavelizar a cidade. Embora esses programas sejam alvo de justos questionamentos, eles lograram diminuir significativamente a vulnerabilidade das famílias aos riscos ambientais e aos recentes efeitos da crise climática. Talvez os exemplos mais expressivos sejam o Conjunto da Aldeia, do ano 2000, e o da Chatuba, de 2005, que retiraram famílias das calhas do Rio Paraíba do Sul e do canal Campos-Macaé. Hoje são relativamente raras as notícias de famílias sendo desabrigadas ou desalojadas nas cheias do Rio Paraíba do Sul.
O custo da “segurança ambiental” dessas famílias tem sido bastante elevado, a se considerar a natureza autoritária das remoções, a ampliação da segregação socioespacial e os problemas de insegurança e territorialidade do crime organizado. Isso sem falar na precariedade do transporte público e nas despesas altas para a manutenção das moradias. Mas, independentemente dos prós e dos contras, estamos desde 2015 sem ações nesse campo. Essa falta de investimentos coloca em risco o relativo ganho das famílias atendidas e deixa de fora a nova demanda acumulada no período. O retorno de ocupações em áreas sensíveis que já tinham sido objeto de remoção prenuncia o retorno de problemas antigos.
Precisamos retomar o debate sobre o futuro da habitação social, agora à luz da premissa da adaptação climática. A habitação social bem localizada e apoiada por políticas sociais complementares tem, de fato, o potencial de combater os efeitos das mudanças climáticas.
Julio Cezar Pinheiro de Oliveira é doutor em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor do Instituto Federal Fluminense (IFF) e pesquisador do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.
¨Tecnologia da IA incide no debate sobre governança urbana.
/
Rawpick Freepick - Agência Brasil
Ao se falar em inteligência artificial, o que vem à sua mente? Às nossas vêm computadores superpoderosos e empresas globais onde jovens de moletom jogam sinuca, tomam Starbucks e programam os algoritmos mais incríveis, revolucionando e dominando o mundo. Mas, convenhamos, o problema não é a sinuca, nem o café, nem os algoritmos geniais. O problema é esse detalhe de querer dominar o mundo.
Não estamos falando aqui da dominação das máquinas sobre os humanos. Trata-se, como sempre, da velha dominação de alguns humanos sobre outros.
Essa dominação pode acontecer de várias formas, mas admitimos que nos falta criatividade suficiente para explorar universos alternativos. Por isso, vamo-nos limitar a duas, que se misturam constantemente: o domínio sobre as nações e o domínio sobre os indivíduos. Queremos abordar isso em uma das dimensões mais sensíveis: a da igualdade.
No recém-lançado livro Igualdade: significado e importância, Thomas Piketty (economista francês) e Michael Sandel (filósofo estadunidense) discutem o tema em três aspectos. O primeiro envolve o acesso universal a bens básicos como saúde, educação, alimentação e habitação. O segundo enfoca a igualdade política: formas de participação, capacidade de expressar valores e interesses e realização do princípio “uma pessoa, um voto”. O terceiro aspecto refere-se ao reconhecimento da igual dignidade de todos os indivíduos. Neste artigo, vamos focar a igualdade política.
O Brasil enfrentava uma onda de ataques a escolas, e se discutia o papel das redes sociais. Já era consenso entre os estudiosos a importância de não exibir imagens e nomes de autores desses ataques — pois isso funciona como estímulo para outros episódios —, mas as advogadas do Twitter (atual X) insistiam que os termos de uso da plataforma não permitiam essa medida. Eis o que ouviram do ministro:
— Não estou preocupado com os termos de uso dos senhores. (...) Nós não vamos deixar uma epidemia de assassinatos nas escolas por causa dos termos de uso do Twitter. Não são os senhores que interpretam as leis no Brasil.
Esse é, sim, um caso de dominação de grandes corporações sobre pessoas e Estados nacionais. E a inteligência artificial é a nova atualização dessa dominação. A IA é intuitiva, como tudo nesse mundo tecnológico, mas é também relacional e envolve confiança, reconhecimento e acolhimento. Se pensarmos IA como uma equação, talvez seja “algoritmo + dados + afeto = poder”.
Por isso, junto aos avanços tecnológicos, palavras como transparência algorítmica, regulação, governança e soberania entraram no foco dos estudiosos. E aí — quem diria? — eles já não olham apenas para computadores superpoderosos e jovens de moletom, mas também para experiências democráticas, incluindo o Orçamento Participativo (OP). Inventado em Porto Alegre (RS) e mundialmente reconhecido, o OP foi apontado como inspiração de co-governança pela edição 138 da Harvard Law Review, uma das revistas mais prestigiadas do mundo na área do Direito. O OP permite que cidadãos debatam e definam onde investir parte do orçamento da cidade.
Como afirma o capítulo 3 da revista de Harvard, “a inteligência artificial está prestes a mudar o mundo: todos sentirão seu impacto. E, se for assim, todos deveriam ter um papel na sua governança.” É assim que podemos encarar a dimensão da igualdade política que havíamos mencionado anteriormente.
Enfim, nesse mundo cada vez mais tecnológico, as inovações políticas e sociais são, muitas vezes, tão importantes quanto as inovações digitais. Ou até mais.
Nilo Lima de Azevedo é doutor em Sociologia Política e pesquisador do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.
Bruna Marcelle Bastos Dias Marinho, doutora em Sociologia Política e Pós Doutoranda no Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.
Tauã Lima Verdan Rangel é doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF), pós-doutor em Sociologia Política (UENF) e pós-doutorando em Políticas Sociais (UENF)
Panorâmica Porto do Açu, 28/07/2025
/
Ricardo Stuckert, Presidência da República
Estudei o cenário de São João da Barra (RJ) ao longo do meu mestrado e doutorado, e escrevi em 26/02/24, aqui mesmo na Folha da Manhã, sobre os problemas de um planejamento urbano competitivo e flexível, orientado pelo e para o mercado. Iniciando, porém, uma nova fase em meu percurso acadêmico, faço um esforço para tomar o mesmo objeto de estudo — a construção coletiva de uma cidade democrática — sob outro ponto de vista. Sem fechar os olhos para os problemas vivenciados na fase de implantação do Porto do Açu, busco prospectar avanços para a coletividade local.
Tendo ingressado recentemente em estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Uenf, estou me dedicando ao tema dos chamados portos e cidades inteligentes. O estudo procura identificar as principais possibilidades de contribuição do Porto do Açu para a institucionalização de políticas públicas que tornem as cidades ao seu redor mais inteligentes.
De acordo com o Relatório Mundial das Cidades, emitido pela ONU em 2022, 68% da população mundial será urbana até o ano de 2050. Em municípios como São João da Barra (79,8%) e Campos dos Goytacazes (92,6%), o Censo 2022 do IBGE já demonstra que a população urbana é maior do que a rural. Em função desse crescimento e com o intuito de aumentar a justiça social, melhorar a qualidade de vida dos cidadãos, tornar o espaço citadino sustentável, bem como solucionar problemas urbanos, surgiram as smart cities, ou seja, as cidades inteligentes.
Tal conceito pode ser apresentado a partir de várias perspectivas e visões, mas há entre elas um consenso: uma cidade inteligente deve dinamizar o desenvolvimento socioeconômico local, seguindo uma estratégia cidadã e democrática que situa a população no processo da ação, tendo a tecnologia e a inovação como instrumentos para responder aos desafios existentes, sem renunciar à sustentabilidade.
No contexto brasileiro, esse conceito tem sido acionado nas áreas da digitalização de serviços, da sustentabilidade ambiental e da participação cidadã, com experiências em São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Campinas e Recife, envolvendo desde mobilidade inteligente até centros integrados de monitoramento. Em Campos, como exemplo pontual até abril de 2021, tivemos o Mobi Campos, um aplicativo que permitia ao usuário monitorar a posição dos ônibus urbanos em tempo real, o que permitia ao passageiro evitar esperas desnecessárias e gerava mais segurança nos pontos.
Em tese, o Porto do Açu pode trazer avanços em inovação, eficiência e qualidade de vida para seus habitantes. Algumas ações apontam para essa direção, como o projeto Cais Açu Lab, que busca cooperação com empresas, instituições de pesquisa, órgãos governamentais e comunidades locais. Outro exemplo é o projeto “Transformando o Presente, Projetando o Futuro” (TPPF), cujo objetivo é melhorar a educação básica e reduzir a evasão escolar em São João da Barra. Ele é patrocinado pela Chevron Brasil — importante parceiro e cliente do Porto do Açu — em cooperação com o Instituto Aliança e a Secretaria Municipal de Educação (Semed) sanjoanense.
O Porto do Açu não precisa se limitar apenas à função de infraestrutura logística, mas desponta como uma plataforma estratégica para a construção de um território mais inovador, sustentável e conectado, podendo ser um agente de transformação urbana e social. Estudar potencialidades e limites desse cenário é uma tentativa para ajudar a desfazer a indiferença do empreendimento com o seu entono. Evidentemente, a efetivação dessa agenda não é simples e depende não apenas da adoção de Tecnologias de Inovação e Comunicação (TIC), mas também de políticas públicas integradas, participação ativa dos cidadãos e parcerias entre os setores público, privado e o meio acadêmico.
Raquel Chaffin Cezario é pós-doutoranda e doutora em Sociologia Política, mestra em Políticas Sociais e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles Núcleo Norte Fluminense. Atua como articuladora de políticas públicas na Secretaria de Educação de São João da Barra (RJ).
Panorâmica Porto do Açu
/
Acervo pessoal Guilherme Pereira
O Porto do Açu, em São João da Barra, pode ser considerado um símbolo da estratégia de desenvolvimento econômico realizada no Brasil no início do século XXI. Em geral, a estratégia envolve o incentivo à realização de projetos relacionados à produção de commodities e a construção de infraestrutura capaz de lançar essas mercadorias no mercado internacional, mobilizando grandes montantes de capital e transformando o uso dos solos.
Originariamente, o porto serviria para exportação de minério transportado pelo mineroduto de 525 quilômetros. Com as ampliações, a estrutura foi aproveitada para outras atividades. Entre 2014 e 2023, 97,3% das movimentações portuárias de longo curso realizadas nos terminais do Açu foram de exportação, segundo dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).
Desde 2022 o Terminal de Petróleo, localizado no terminal offshore e responsável pelo transbordo e exportação do petróleo, está entre os terminais mais importantes do país. Em 2023 ele assumiu o papel de principal terminal de exportação dessa commodity no Brasil, correspondendo naquele ano, segundo a Antaq, a 50% do total exportado, reafirmando a importância do empreendimento.
O complexo também se insere na dinâmica de produção de energia. Em 2021, a Gás Natural Açu I (GNA I), termelétrica movida a gás natural, foi inaugurada — e, além dela, o terminal de gás natural liquefeito (GNL) para o abastecimento da usina. Em 28/07 foi inaugurada a GNA II. Juntas, as duas usinas podem gerar até 3 GW de energia — suficiente, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), para abastecer 14 milhões de residências.
Ainda segundo a Aneel, a GNA II consta como obra do novo PAC. Dos R$ 7 bilhões de investimentos, R$ 3,93 bilhões foram financiados pelo BNDES. Importante destacar que o acionamento das termelétricas depende da demanda de energia pelo sistema nacional, e desde seu início de operação a GNA I foi acionada todos os anos.
O acionamento das usinas depende da demanda nacional. A partir de 2015, a Aneel adotou o sistema de bandeiras tarifárias, refletindo o custo de produção de energia no Brasil, que aumenta com o uso de usinas termelétricas. Em fins de julho foi acionada a bandeira vermelha patamar 2, gerando, na conta de luz, aumento de R$ 7,87 para cada 100 quilowatts-hora (kWh) consumidos.
Outra questão em jogo é a das isenções fiscais. Em 2024, o governo do estado do Rio de Janeiro proporcionou regime fiscal diferenciado para as termelétricas (Lei 10.456/24), isentando de imposto a importação de gás natural. Entre os beneficiados está justamente o complexo do Açu. A renúncia fiscal envolvida em 2025 é estimada pelo Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Estadual do Rio de Janeiro (Sinfrerj) em R$ 13,5 milhões.
Também importantes são os efeitos ambientais. O Sistema de Estimativas de Emissão de Gases de Efeito Estufa (Seeg) indica que a produção de energia na GNA I desde 2021 aumenta significativamente as emissões de gases carbono equivalente (métrica GWP-AR5). As estimativas indicaram que em 2021, início da operação e produção por seis meses, as emissões causadas pela produção de energia aumentaram em sete vezes em relação ao ano anterior. Mesmo depois desse pico, nota-se que em 2023 a produção de energia respondeu por 66% do conjunto de emissões no município.
Essa realidade indica a necessidade constante de discussão sobre o empreendimento instalado em São João da Barra e o padrão de desenvolvimento econômico produzido ali. Ali e no país de modo geral.
Guilherme Vasconcelos Pereira é economista, doutor em Sociologia Política pela Uenf e pesquisador do Núcleo Norte Fluminense do Observatório das Metrópoles.
Mobilidade no Centro de Campos dos Goytacazes
/
Acervo MobiRede
A garantia do direito a cidades acessíveis e sustentáveis, à integração dos modos de transporte, à infraestrutura e à gestão democrática faz parte dos objetivos da política de mobilidade urbana.
Essa política é responsável por atender demandas sociais como a acessibilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida a todas as rotas e vias existentes; propiciar à população condição de acesso ao lazer, aos serviços e instrumentos urbanos adequados bem como aos equipamentos públicos, visando à melhoria da qualidade de vida.
É com esse propósito que a análise da atuação do poder público deve ser realizada, de modo a incorporar o direito à cidade no campo da gestão pública da mobilidade urbana. Nesse sentido, as políticas públicas de mobilidade urbana precisam, entre outros objetivos, atender o interesse público e coletivo, construindo uma política planejada e articulada democraticamente para a redução das desigualdades sociais e o aumento do acesso ao que é de direito do cidadão.
Na pesquisa “Políticas públicas e controle social: mobilidade urbana e aplicação dos recursos públicos em Campos dos Goytacazes/RJ”, foi possível analisar que no município, no âmbito formal da política (ou seja, no que consta no papel, estando previsto em lei), há, como estratégia da política de mobilidade urbana, as diretrizes de integração do território municipal, de promoção da acessibilidade e mobilidade universal, de requalificação dos espaços públicos, de ampliação e integração das diversas modalidades de transporte com as variadas atividades humanas localizadas no território municipal.
Contudo, ao aproximarmos o olhar para a realidade contida no cotidiano dos cidadãos, é possível enxergar lacunas que indicam a existência de um longo caminho a se percorrer para alcançar a justiça socioambiental. Podemos citar aqui alguns “gargalos” mais evidentes que afastam essas metas, tais quais a precariedade da infraestrutura de transporte público; pontos de ônibus com pouca iluminação; insegurança; horários convencionais e rotas que favorecem apenas o uso do transporte público para o trajeto ao trabalho, deixando em segundo plano o lazer e as atividades noturnas, inclusive as relacionadas ao ensino, com um maior agravante nos finais de semana; calçadas irregulares e deterioradas com dimensões que dificultam a caminhabilidade e o acesso de pessoas com deficiência ou locomoção reduzida; a deseducação no trânsito; a falta de continuidade e de distribuição homogênea da sinalização etc.
Diante deste contexto, também nos importa voltar a atenção para variáveis menos visíveis, que são possíveis de se identificar quando direcionamos o olhar para o aspecto mais operacional da gestão dessas políticas. Dentro do setor de mobilidade, é possível identificar um déficit de instrumentos de participação social que consigam promover uma melhor interlocução entre as demandas da sociedade civil e o Estado (poder público). Nota-se que as ações da gestão responsável pela mobilidade urbana estão, em grande parte, voltadas para a (re)estruturação da estrutura administrativa; a (re)configuração de marcos legislativos; bem como o desenvolvimento e o resgate de (macro)projetos voltados para infraestrutura viária, novas vias e traçado urbano.
Contudo, se levarmos em conta uma cultura política marcada pela valorização de políticas de curto e médio prazo (dado o período de quatro a oito anos de governo, a depender se haverá ou não reeleição), acaba-se gerando, muitas vezes, um ciclo com início e meio, mas sem um fim.
De fato, ações mais efetivas têm sido direcionadas ao campo da mobilidade urbana, com ciclovias e a ampliação e criação de ciclofaixas, que tem sido implementadas como principal (na verdade, única) política pública de mobilidade ativa. Nos aspectos de acessibilidade, sustentabilidade e transporte público integrado, é possível observar pontos que necessitam de investimento público, desde intervenções na infraestrutura de vias e calçadas, considerando a arborização, até o melhoramento da frota de transporte público, assim como projetos integrados ou alternativos que inclusive estimulem o uso de patins, patinete e skate, caminhadas e corridas, pensando nas possíveis manifestações esportivas na paisagem urbana.
Quanto à estrutura administrativa, a partir de 2020, a mobilidade urbana se inseria em uma “macrossecretaria” de Planejamento Urbano, Mobilidade e Meio Ambiente (SEMPUMMA). Esse grande guarda-chuva abrigava três subsecretarias — Mobilidade; Meio Ambiente; e Planejamento Urbano —, além do Instituto Municipal de Trânsito e Transporte (IMTT), órgão executivo.
Mas este ano, houve uma reformulação, que extinguiu a SEMPUMMA como secretaria, estabelecendo a antiga Secretaria de Meio Ambiente, bem como a Subsecretaria de Planejamento Urbano e a Subsecretaria de Mobilidade Urbana como subsecretarias ligadas à Secretaria de Obras. Embora tais (sub)secretarias estejam teoricamente integradas, na prática poderiam apresentar mais projetos ou ações conjuntas no campo da mobilidade urbana, com melhor articulação com o IMTT e os Conselhos Municipais. Outra evidência: embora o Plano Diretor de Campos preveja uma série de instâncias associadas à mobilidade, o que se vê (sem retirar sua importância) são políticas mais direcionadas à infraestrutura física da malha viária, a ciclofaixas em áreas mais centrais (sem integração das ciclovias e ciclorrotas em toda planície campista) e à instalação de novas coberturas em pontos de ônibus. Pouco se observa de atuação efetiva e diferencial em áreas como transporte público hidroviário, multimodal e em prol da acessibilidade, por exemplo.
Apesar dos avanços com os marcos legais e políticas adotadas pelas (sub)secretaria(s) e pelo IMTT, bem como da identificação de esforços por parte do poder público para a melhoria das políticas urbanas de mobilidade, o setor ainda encontra déficits significativos para estabelecer uma política de mobilidade baseada em indicadores da sustentabilidade, acessibilidade e justiça social. Por exemplo, sentimos falta de publicização/visibilidade da atuação do Conselho de Mobilidade, que poderia ocorrer de forma mais transparente, ou de que haja outro espaço de diálogo com as minorias que dependem da mobilidade ativa e/ou do transporte público, para que não haja um tipo de engessamento que reproduza as desigualdades sociais.
Outro fator identificado que dificulta a operacionalização das políticas de mobilidade, embora não seja uma especificidade do caso campista, é a falta de continuidade política e de informações oficiais acessíveis nos canais de comunicação: com o fim dos mandatos ou troca de gestores, por vezes se rompe o que já fora estabelecido, acarretando a descontinuação de projetos. Também se observa que o site da prefeitura está desatualizado quanto aos Conselhos e órgãos e que há dificuldade para acessar dados orçamentários de forma clara e direcionada aos investimentos no setor de mobilidade urbana.
O Plano Diretor aborda os conceitos de sustentabilidade e acessibilidade, mas o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável — que é um instrumento da política urbana municipal, aprovado por lei como um plano de ação em 2022 — precisa ser revisto. Por decisão do Tribunal de Contas do Estado (TCE), no processo TCE-RJ 204.917-3/2023, é preciso aproximar da realidade local o desenho dessa política pública. Dentre os aspectos destacados pelo órgão que vetaram a implantação do plano de mobilidade estão: (a) a formulação do plano apenas com diretrizes que demandam ações a serem posteriormente planejadas, inviabilizando qualquer possibilidade de comparação concreta com o Plano Diretor; (b) falta de ações estratégicas no PMU; (c) falhas no planejamento (diagnóstico, prognóstico, criação de soluções, resultados esperados e formulação) que inviabilizam a aplicação prática da Política Pública de Mobilidade Urbana; (d) falta de participação social e de transparência no processo para a formulação do PMU; (e) falta de planejamento e gerenciamento na política pública de mobilidade urbana considerando os impactos dos transportes intermunicipais; e (f) lacunas entre as ações estratégicas de mobilidade urbana e urbanismo de Campos dos Goytacazes com os instrumentos de planejamento orçamentário do Executivo.
Isso destaca a necessidade tanto de se estabelecer categorias de ações fundamentadas em diretrizes e metas — como as presentes nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, no Estatuto da Cidade, no Plano Nacional de Mobilidade Urbana, no Estatuto da Pessoa com Deficiência e no Plano Diretor — quanto de melhorias na operacionalização das políticas públicas de mobilidade urbana observando aspectos fundamentais de gestão, como ações integradas, planejamento orçamentário e dispositivos de participação social. Dessa forma, será possível efetivar as políticas públicas municipais, avaliá-las e estabelecer (novas) estratégias que consigam, de fato, fazer diferença na realidade dos cidadãos.
Juliana da Cunha Miguel é doutoranda do PPGSP/UENF, pesquisadora assistente do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e bolsista voluntária do APPA/MobiRede - IFF.
Daniela Bogado é professora do IFF Campos e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do APPA/MobiRede.
Uso de água tratada
/
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Em 2021 dezenas de municípios fluminenses — como São Fidélis, São Francisco de Itabapoana, Carapebus e outros do Norte Fluminense — transferiram à iniciativa privada a responsabilidade pela provisão do abastecimento de água e do esgotamento sanitário. Hoje, já são 65 municípios do estado que contam com a oferta desses serviços por empresas privadas. Uma mudança significativa que levanta debates sobre a atuação das prefeituras e sobre quem ganha com essa reestruturação.
Após cerca de quatro anos de concessão, a universalização e a modernidade na infraestrutura sanitária parecem distantes, e a justiça ambiental segue fora do radar.
Pesquisa de nossa autoria apresentada em maio de 2025 no XXI ENANPUR (Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional) traz algumas respostas. Um dos motivos decisivos para transferir a provisão para a iniciativa privada foi a outorga recebida pelos municípios por meio da concessão — um valor em dinheiro pago pelas concessionárias. Outro ponto importante foi o receio de ficar sem o repasse de recursos da União previsto para projetos de concessão ou parcerias público-privadas no novo marco legal do saneamento (Lei 14.026/2020). Atualmente, os municípios da região apresentam dificuldades orçamentárias diante de suas responsabilidades, tornando-os dependentes do repasse de recursos estaduais e federais para a concretização de suas políticas públicas. Além disso, falou mais alto a lógica imediatista de tentar eximir-se da responsabilidade pela solução dos problemas da gestão do saneamento.
Também levantamos as razões para não se aderir à privatização: (a) o diálogo constante das prefeituras com a Cedae e com o sindicato, especificamente o Staecnon (Sindicato dos Trabalhadores em Saneamento de Campos e Região Norte e Noroeste do Estado do Rio de Janeiro), e (b) o andamento de projetos no setor de saneamento, inclusive em parceria com a Cedae. Na região, não aderiram os municípios de Macaé, Quissamã, Cardoso Moreira, São João da Barra, por exemplo. Vale notar que Campos dos Goytacazes já possuía serviços privatizados desde 1999.
Todo o processo de concessão se revelou pouco transparente e marcado pela ausência de participação efetiva dos municípios e da população nas decisões, inclusive em virtude da pandemia da Covid-19. Pior: não houve estudos de viabilidade técnica e financeira, e em muitos casos os próprios municípios não eram capazes de entender as demandas do setor e fiscalizar a prestação do serviço. Nesse cenário, a privatização nem deveria ser cogitada como solução para o saneamento, uma vez que as prefeituras não conseguem sequer dialogar com os prestadores.
Na busca por cumprir um requisito formal, foram apresentados Planos Municipais de Saneamento Básico feitos apenas para constar — tanto que alguns municípios estão agora trabalhando na sua efetiva construção.
Outro ponto crítico foi a passividade frente às decisões do governo estadual, com as prefeituras não reconhecendo a própria autonomia. Por fim, a relação conflituosa de muitas prefeituras com a Cedae agravou ainda mais o cenário, perdurando na região a falta de diálogo entre o ente municipal e a companhia estadual.
Nitidamente a decisão municipal vai além de uma mera escolha política, envolvendo a complexa condição da capacidade institucional — potencial de atuação na gestão e provisão do saneamento. Fica evidente que os caminhos para a ampliação do acesso ao saneamento passam pelo fortalecimento municipal. Apesar de casos isolados de oposição às práticas inadequadas das empresas privadas, ainda falta uma medida definitiva e de controle que reduza a lógica do lucro acima do acesso universal.
Sem essa perspectiva que deveria guiar a provisão e a gestão do saneamento, a universalização seguirá apenas como elemento narrativo para reprodução de estatísticas que não revelam a realidade de nossa região. Esse é outro problema sério, que, quem sabe, pode vir a ser tratado em um futuro artigo.
Juliana Santos Alves de Souza é doutoranda em Ciências Ambientais e Conservação pela UFRJ e pesquisadora assistente do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.
Érica Tavares é professora da UFF e uma das coordenadoras do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Socioambientais NESA/UFF.
Giuliana Franco Leal é professora da UFRJ-Macaé e líder do Grupo de Pesquisa em Estudos Socioambientais e Ecologia Política, no Instituto NUPEM/UFRJ.
Cidade de Campos dos Goytacazes
/
Coleção Núcleo Norte Fluminense.
A partir de hoje, site do jornal Folha da Manhã lança o blog Observa Cidades, espaço cedido ao debate público sobre os desafios para o desenvolvimento urbano com foco nos municípios do Norte Fluminense. O conteúdo é produzido pelo Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles, que reúne pesquisadores e professores do IFF, Ucam, Uenf, UFF e UFRJ.
A sigla INCT se refere ao programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Como consta do edital mais recente, de 2024, o programa é voltado para o fomento a “pesquisas de alto impacto científico e visando à solução dos grandes desafios nacionais”. O Observatório das Metrópoles é um dos INCTs aprovados e desenvolve pesquisa em rede por meio de 18 núcleos instalados em metrópoles ou centros regionais brasileiros. O Núcleo Norte Fluminense, sediado na Uenf, é um dos três que não se localizam em capitais — ao lado dos da Baixada Santista (SP) e de Maringá (PR).
Uma das características distintivas do INCT Observatório das Metrópoles é a produção de conhecimento capaz de contribuir com o debate, elaboração, implementação e avaliação de políticas públicas. Por isso o esforço dos pesquisadores ocorre em diálogo com autoridades públicas e movimentos sociais. Também por isso o blog Observa Cidades vai tratar sempre de questões urbanas aplicáveis à realidade de Campos, Macaé, São João da Barra e outras cidades da região.
Em 2024, ano de eleições municipais, o Núcleo Norte Fluminense ocupou espaço semelhante na Folha da Manhã com o projeto “Observatório das Metrópoles nas eleições: um outro futuro é possível”. Ao final do primeiro semestre, um resumo do debate foi compilado na publicação de um Caderno de Propostas aos candidatos.