Arlete Sendra
01/02/2025 10:53 - Atualizado em 01/02/2025 10:54
Arlete Sendra no Folha no Ar
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Isaías Fernandes
… um “Eu”entre outros e plurais ‘EUS’.
Arlete,
são tantos os “eus” que habitam em nós, que é difícil decidir com qual de seus “eus” quero hoje conversar, ‘eu que sou um seu “eu”. Ou um “eu” seu. E temos tão pouco tempo que não podemos vacilar: o tempo passou! E eu pergunto a você: o tempo passou ou fomos nós com nossas ansiedades e fixação no inexorável futuro que estamos fazendo que “de repente, não mais que de repente”, lembrando nosso poetinha, ele, o futuro virou passado? Passou e nós não vimos? Ou o tempo é outro e nós insistimos em viver dentro das convenções sociais por nós herdadas?
Sempre aprendi que somos filhas/filhos de nosso tempo e que trazemos conosco, bem no íntimo de nossos “eus”, sejam eles quais forem, suas marcas e perspectivas. Então, somos os sonhos do passado em plurais alternâncias — ou como se rascunhos fôssemos.
Hoje a técnica fala por nós, aliás, se tornou nossa voz: whatsapps, instagram, facebook outros tantos instrumentos entraram em nosso tempo e subtraindo nossa voz, minimizaram nosso pensar. Subtraíram o que queremos ou queríamos dizer. Não há “tempo” a perder. E dentro de silenciadas e silenciosas reticências, territorializaram-nos.
Guardo lembranças. Algumas coletivo-as. Outras, silencio-as. Obviamente. Lá, nosso tempo também era curto para os sonhos de nosso viver. Escrevíamos cartas. E telefonávamos. E entre ruídos e ausências, justificávamos os nãos tantas vezes implícitos no silêncio.
Curioso como o “eu”, gramaticalmente, primeira pessoa do singular, é tão plural. Aliás, chego a pensar que singular aqui é uma palavra “pluralia tantum”, ou seja, porta outros sentidos. É a gramática regendo as leis do conviver.
Como o “amanhã” é uma incógnita, esse incognitismo nos impõe ora rebobinar o passado, ora tornar presente a pauta do futuro. Um futuro na pauta do imaginário, porque não sabemos quanto tempo dura um hoje. Repetir as 24 horas é tocar a clave dos ontens. Há dias que são combustíveis para a vida. É preciso, penso eu, se pensar e ou repensar o que pomos dentro da vida para vida ser. Viver por viver é fraude. Assim vemos que há dias que passaram tão desapercebidamente que nem aconteceram. Foi, apenas e tão somente um “trans-ire”, um passar.
E foi, fazendo um turismo pelo território das mulheres, revendo as geografias já trilhadas, vividas, sofridas e sonhadas, constatei que até o “seculo das luzes” deixou as mulheres no escuro. Constatei, entre estarrecimentos iniciais e sonhos e desejos irmanados, que o útero, feito pinico pelas “nobrezas” e fome instintivais, alimentavam entre tons e semitons, sonhos e esperanças incertas o desejo de propriedade do próprio corpo. E os corpos começaram a se rebelar. E ainda estão em processo de um eu mulher se assumirem.
E foi na segunda metade do século XIX que, imperceptivelmente, as mulheres incorporaram e viveram em seu dia a dia, dentro dos tempos que sempre se alternam, calendariamente, descontinuidades x continuidade, igualdades x diferença, determinismos x imprevisibilidade, sustentáculos de todo e qualquer projeto: todo dia é sempre o dia de recomeçar.
Estamos no final do século XIX, pequenos e pouco visíveis ganhos começam a acontecer: uma onda tudo enovela. Era a primeira. Era a cidadania em construção. Há uma promessa de igualdade que em pleno século XXI ainda não alcançou. Mas foi nesta onda que o direito ao voto nos foi dado.
Surfando pela segunda onda, Simone de Beauvoir ressalta a presença feminina “não se nasce mulher, torna-se mulher”, vaticinador pensar. E as mulheres radicalizam: “nosso corpo nos pertence”. E abrem uma ostensiva busca pelas relações inter-humanas.
Uma terceira onda vai serpeando os espaços, trazendo inovadoras e renovadoras relações e reações histórico-culturais. A honra masculina está no corpo da mulher. O homem entra em crise. O homem está em crise. Feminicídeos se sucedem. O binarismo/mulher perde seus espaços. Um complexo de macho se torna risível.
E ondas se sucedem. A heterossomatividade opressora está inscrita no obsoletismo. Corpos antes transgressores assumem em sua liberdade a conquista de se assumir quem se é. E como se quer ser.
Novas ondas se formam no horizonte. A opção do gênero a assumir é acolhida por um grupo jovens que chegou chegando e em ondas a serem formadas se abraçam formando ondas e ondas no horizonte. No papel como na vida, não nossos desejos que nos inscrevem no SER.
Então, Arlete, moro dentro de você e penso que temos muito em comum. Mas também divergimos. E tantas vezes!
Você assinaria estes pensares nascidos dos observatórios da vida?
EU, sua psiquê.
*Professora, escritora e membro da Academia Campista de Letras