Arthur Soffiati - Ascenso Ferreira e Mário de Andrade
Arthur Soffiati - Atualizado em 01/03/2023 08:25
Dia desses, vasculhando meus livros, encontrei um exemplar da primeira edição de “Cana caiana”, do poeta nordestino Ascenso Ferreira. Minha biblioteca tem segredos até para mim. De súbito, muitas recordações brotaram em minha mente. Ganhei esse livro do grande bibliotecário Olímpio José Garcia Matos, da Biblioteca Nacional. Esse e vários outros. Olímpio me dizia: “Não convém que um bibliotecário desta instituição tenha apego a livros. Imagine se eu praticasse a arte de furtar!”
E o pobre e rico Olímpio se foi ainda na década de 1990, quando frequentei a biblioteca com assiduidade para fazer minhas pesquisas. Com ele, a vida era mais fácil, pois burlava toda a burocracia. Além dos livros com que me presenteou, ele bancou do próprio bolso encadernações caras. Ele e Maria das Graças Gonçalves, outra grande colaboradora da Biblioteca Nacional. Campista, ela foi minha aluna no Liceu de Humanidades de Campos e também não mais vive entre nós.
As sumárias biografias de Ascenso Ferreira dizem que ele começou como poeta parnasiano, convertendo-se ao modernismo pela influência de vários deles, como Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Nas notas da viagem que Mário fez ao Nordeste em 1928 e 1929, publicadas em “O turista aprendiz”, há um apontamento sobre Ascenso Ferreira que não posso deixar de transcrever: “Ascenso Ferreira é de fato um indivíduo extraordinário. Não existe ligação nenhuma entre o espírito dele e o seu físico; este é dum verdadeiro irracional, bruto, pesadão, sem absolutamente nenhum sequestro, tem sede bebe, tem fome come o que tem e não tem até não poder mais. Passa um indivíduo vendendo jornais, Ascenso compra, passa os olhos sem ler, compra pra comprar, está empanzinado e bebe 2 copos de água de coco gelada e bebe um café em cima. No meio da comida, boca suja, fala: — Porque Macunaíma não pode ser compreendido no sul... e continua comendo. Ninguém não falava em Macunaíma nem ele falará mais. O espírito, isolado do corpo, não consegue raciocínio quase nenhum. Vive de decretos e iluminações. Detesta escrever prosa e jamais será prosador. Um ser extraordinário, escarra onde está por cima do ombro, se suja todo. Suja os outros, não senta sem se deitar, encosta em tudo, até na gente. Vê mulata, fica louco, bonita, feia, são todas bonitas pra ele. Afirma: — Nesta casa morou Maurício de Nassau. — Morou mesmo, Ascenso! (em Igaraçu) — Morou sim. Passa um habitante, Ascenso pergunta: — Foi ali que morou Maurício de Nassau? É assim. Nenhum controle. Fatiga. Mas é um bom admirável. É vaidoso como o que. Não tem o mínimo orgulho e por isso nenhuma organização.” (“O turista aprendiz”. São Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976).
Folheio o livro, publicado pela Livraria José Olimpio Editora, em 1939. Escolho o poema “Misticismo”: “O espírito mau entrou no meu couro!/entrou no meu couro algum mangangá/e eu quero mulheres.../mulheres.../mulheres...//Curibocas!/Mamelucas!/Cafussus...//Caboclas viçosas de bocas pitangas!/Mulatas dengosas caju e cajá!//Mulheres brancas como açúcar de primeira!/Mulheres macias como a penugem do ingá!/Mas sempre mulheres.../mulheres.../mulheres...//(Ou lelê)//Todas formosas,/todas belas,/Todas novas.../(Ou lalá)//Deitadas molengas em folhas macias!/Na sombra rajada das bananeiras lentas/iluminadas por um sol das almas!//Só pra eu,/devagarinho/fazer com elas!//Pinicainho/da barra do 25/mingorra mingorra/tire esta mão/que já está forra...”
E, pra terminar, não posso esquecer “Filosofia”, que ele dedicou a José Pereira de Araujo: — “Doutorzinho de Escada”: “Hora de comer, — comer!/Hora de dormir, — dormir!/Hora de vadiar, — vadiar!//Hora de trabalhar? — Pernas pro ar que ninguém é de ferro!” Ascenso Ferreira não apenas tinha fama de preguiçoso. Ele era preguiçoso e não gostava de trabalhar. O avesso de Mário de Andrade.
Como “O turista aprendiz” foi publicado muito tempo depois da morte de Mário, pode-se depreender que Ascenso nunca conheceria a opinião do paulistano sobre o poeta nordestino. Há, contudo, um artigo em que Mário comenta o lançamento de “Catimbó”, o primeiro livro de Ascenso Ferreira. Ele foi publicado no “Diário Nacional” (São Paulo), em 1927, e não foi incluído no livro que Telê Ancona Lopez organizou, reunindo a mais longa colaboração de Mário para a imprensa, de 1927 a 1932 (“Táxi e crônicas no Diário Nacional”. S. Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976). Junto com apreciação crítica de Sérgio Milliet, o artigo escrito por Mário foi estampado em livro com seleção de poemas de Ascenso (“Ascenso Ferreira: seleção de poesias” Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Brasília, 2022). Trata-se de livro com fino acabamento, como são todos os da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, homenageando um escritor nordestino no centenário da Semana de Arte Moderna.
Mário reconhece a contribuição de Ascenso ao modernismo: “Depois que as personalidades dos iniciadores se fixaram, só mesmo Ascenso Ferreira com ‘Catimbó’ trouxe pro modernismo uma originalidade real, um ritmo verdadeiramente novo [...] ele renova e reforça uma das tendências mais estrambólicas e passadistas do modernismo brasileiro: a poesia oratória [...] dentro do seu rapsodismo cantador sempre Ascenso Ferreira teve o mérito de não descambar nunca para béstia acadêmico”.
O crítico percebe a musicalidade que Ascenso conserva num tempo em que a palavra escrita avançava e se impunha à literatura: “...estamos no período do jornal, do livro, da pressa [...] O rádio e o fonógrafo, embora orais como base de funcionamento, em princípio concordam ainda com a comodidade apressada da época e facilitam a realização artística [...] numa época eminentemente leitora, tipográfica, os brasileiros dizem que foram fazer modernismo, em vez, auxiliados pelo romantismo cochilante da terra e da raça, caíram no aproveitamento dos encantos da voz e dos efeitos orais [...] Efeitos orais de todo gênero, dizeres antiquados, modismo sintáticos ou vocabulares originados da incultura popular, e... chaves de ouro”.
Como exemplo, cita Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. Quanto a este último, não poupa a poesia de “Pau-Brasil”. Contudo, alerta Ascenso quanto ao perigo de trabalhar com verso livre e metrificado. De fato, o poeta nordestino vai de versos longos, à moda das cantigas sertanejas, ao soneto. Parodiando Gonçalves Dias, escreve em “Minha terra”: “Minha terra não tem terremotos... nem ciclones... nem vulcões...//O homem de minha terra, para viver, basta pescar!//e se estiver enfarado de peixe, arma o mondé/e vai dormir e sonhar...” (“Ascenso Ferreira: seleção de poesias”. Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Brasília, 2022). Esse mundo acabou. É a divina preguiça de Mário. Quanto aos sonetos, não são muitos, mas destoam do conjunto da obra e não são dos melhores.
Avesso ao regionalismo na primeira fase do modernismo, Mário acaba reconhecendo o valor do regional na cultura erudita brasileira ao escrever que o livro de estreia de Ascenso não seria reconhecido fora do nordeste: “No Pará, em Minas, em Mato Grosso, no Rio de Janeiro, no Paraná, no Rio Grande do Sul etc, Catimbó é um livro exótico. Direi apenas, para melhorar a expressão, que é livro fraternalmente exótico.” Mário costumava ser franco em suas cartas e na sua crítica pública, tanto com artistas amigos ou com quem não tivesse intimidade. Muitas vezes foi bastante mal compreendido por isso. Ele mesmo declarou que a crítica é arte e deve expressar o entendimento do seu autor quanto à obra alheia. Mário pode ter errado na avaliação do primeiro livro de Ascenso, mas escreveu o que pensava com embasamento, ainda mencionando os nomes de outros poetas.
Era de se esperar que Mário mantivesse correspondência particular com o poeta nordestino, externando mais ainda sua franqueza. Várias cartas de Mário a Ascenso foram conservadas e publicadas por Joaquim Inojosa. Quanto às prováveis cartas de Ascenso a Mário, é certo que estejam cuidadosamente guardadas em seu acervo no IEB-USP, aguardando publicação. Numa carta de 20 de janeiro de 1935, Mário escreve a Ascenso: “Não existe monotonia na vida, a monotonia vem de nós mesmos. Sempre senti que falta pra você aquela espécie de entusiasmo amoroso com que a gente agarra a vida com mãos, pés, braços e dentes, morde ela, dá nela, e faz coisas que não se dizem com ela.” (ANDRADE, Mário. Cartas a Ascenso Ferreira. In: INOJOSA, Joaquim. “O movimento modernista em Pernambuco”, vol. 3. Rio de Janeiro, Tupy, 1959).
Essa franqueza acompanhou o intelectual do início ao fim da sua vida.

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