Mercedes Baptista, 100 anos de um símbolo da cultura afro-brasileira
Matheus Berriel - Atualizado em 21/05/2021 14:46
Mercedes Baptista (1921-2014)
Mercedes Baptista (1921-2014) / Arquivo Nacional/Divulgação
No final da década de 1920, um jovem Wilson Baptista de Oliveira deixava a cidade de Campos para se tornar, na então capital brasileira, um dos maiores compositores da história da nossa música. Autor de sambas como “O Bonde São Januário” e “Mundo de Zinco”, Wilson Batista fez o mesmo caminho de outra personalidade campista, com sobrenome artístico igual ao seu. Trata-se da bailarina e coreógrafa Mercedes Baptista, cujo nascimento completou 100 anos na última quinta-feira (20). Mais reconhecida na Cidade Maravilhosa do que em sua terra natal, ela foi a primeira negra a fazer parte do corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e um símbolo de resistência da africanidade no Brasil, com atuação marcante também no Carnaval.
— A celebração do centenário da grande e icônica Mercedes Baptista é, certamente, obra necessária. E deveria estar acompanhada da promoção de amplas apresentações sobre a sua vida, carreira e o seu pioneirismo — afirma a diretora do Arquivo Público Municipal de Campos, Rafaela Machado: — O apagamento da sua história não é obra do acaso e responde a uma dinâmica sócio-cultural arraigada e construída historicamente. Precisamos promover a sua história, a sua trajetória profissional, o seu brilhantismo e pioneirismo não como meros apelos ao passado, mas como exemplo ainda a ser debatido e discutido no presente. A vida de Mercedes, a sua história e a sua trajetória falam mais sobre o presente do que se pode imaginar.
De origem humilde, filha de João Baptista Ribeiro e da costureira Maria Ignácia da Silva, Mercedes Ignácia da Silva Krieger nasceu em Campos no dia 20 de maio de 1921, mas foi nova para o Rio. Lá, começou a ter contato com as artes e, a partir de 1945, estudou balé com a renomada Eros Volúsia. Também foi aluna de Yuco Lindberg, já na Escola de Dança do Theatro Municipal, e, mesmo com todo preconceito da época, se destacou a ponto de ser aprovada em um concurso para integrar o corpo de baile da casa.
— Ela venceu preconceitos de cor, de gênero e social. Mercedes Baptista representa não apenas a vitória da mulher negra, mas de todas as mulheres no mundo das artes — comenta a historiadora campista Sylvia Paes.
Na mesma época do ingresso como aluna no Theatro Municipal, Mercedes fez parte do Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento, e no início dos anos 1950 conquistou uma bolsa de estudos na companhia de Katherine Dunham, nos Estados Unidos. No retorno ao Brasil, criou o grupo Ballet Folclórico Mercedes Baptista, voltado especialmente à dança afro-brasileira.
— Ela faz essa fusão entre a dança clássica e o balé afro de uma forma brilhante. É uma das pioneiras, por exemplo, nos estudos sobre coreografias ligadas às danças dos orixás do candomblé — enfatiza o professor e historiador Luiz Antonio Simas, autor de diversos livros relacionados à afro-brasilidade: — A referência que nós temos de alguém que faz isso um pouco antes é o Joãozinho da Gomeia, um pai de santo de Caxias que já tinha levado para os palcos alguns elementos das danças dos orixás. Agora, a Mercedes sistematiza essa ideia do balé popular.
Em 1963, Mercedes Baptista teve papel importante no desfile campeão da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. Foi ela a responsável por coreografar a comissão de frente e a hoje famosa ala do minueto, um dos pontos altos na apresentação do enredo “Xica da Silva”, assinado pelo carnavalesco Arlindo Rodrigues.
— Naquele desfile de 1963 do Salgueiro, Mercedes lança no Carnaval elementos da dança clássica, articulados também a uma trajetória que ela tinha de pensar a dança afro, que vai marcar a escola de samba. A rigor, é um marco na história da coreografia de ala em desfile — destaca Luiz Antonio Simas: — Ela vai coreografar a comissão de frente do Salgueiro, isso era uma novidade. Na comissão, já introduz alguns elementos da dança clássica nessa fusão com a dança popular, com a dança afro, e acaba também sendo também a responsável pela coreografia da ala do minueto, que causou um verdadeiro escândalo no Carnaval. Havia muito a ideia de que os desfiles corriam de forma mais solta. Então, esse componente dramático da dança, da coreografia, dos passos, isso é introduzido pela Mercedes Baptista.
Após muitos espetáculos no Brasil e na Europa, e aparições no cinema e na televisão, a campista se tornou professora da Escola de Dança do Theatro Municipal do Rio, além de ministrar cursos nos Estados Unidos. Em 1976, recebeu uma das primeiras grandes homenagens públicas, feita pelo Bloco Carnavalesco Alegria de Copacabana. Em 2000, foi homenageada também na Câmara Municipal do Rio, como forma de reconhecimento à sua contribuição para a arte brasileira. A escola de samba Acadêmicos do Cubango, de Niterói, desfilou na segunda divisão do Carnaval carioca, em 2008, com o enredo “Mercedes Batista, de passo a passo, um passo”, do carnavalesco Wagner Gonçalves.
— Lamentavelmente, Campos continua confirmando o péssimo costume de não valorizar os campistas ilustres de verdade, principalmente os ligados à cultura popular — cobra o professor e pesquisador Marcelo Sampaio: — Para isto mudar na nossa cidade, é fundamental uma mudança de mentalidade não só das pessoas que ocupam cargos públicos, como também da população, que deveria cobrar bem mais.
Mercedes Baptista morreu em 19 de agosto de 2014, aos 93 anos, numa casa de repouso em Copacabana, onde morava. Ela sofria de diabetes e problemas cardíacos. Seu corpo foi cremado no Memorial do Carmo, também no Rio. Em 2016, a prefeitura carioca instalou uma estátua da artista no Largo de São Francisco da Prainha, na Praça Mauá.
— A praça fica na Zona Portuária do Rio de Janeiro, uma região atravessada e marcada pela história do negro na cidade, e que passou recentemente por mais um processo de revitalização — lembra a gerente do Museu Histórico de Campos, Graziela Escocard: — Ali temos o Cais do Valongo, o Morro da Conceição, o Cemitério dos Pretos Novos e a Pedra do Sal, lugar de origem do samba urbano carioca e da fundação do primeiro terreiro do Rio. Mercedes Baptista ganhou essa estátua em um lugar importante, pois foi reconhecida como bailarina clássica, mas principalmente pela dança moderna, pelas danças afro-brasileiras, com influência de religiões de matriz africana.
Estátua de Mercedes Baptista na Zona Portuária do Rio
Estátua de Mercedes Baptista na Zona Portuária do Rio / Divulgação

ÚLTIMAS NOTÍCIAS