Conto: Quem está fora não entra e quem está dentro não sai
*Afrânio Sobral 13/07/2020 19:42 - Atualizado em 24/07/2020 18:41
Só dez anos depois de controlada a pandemia causada pelo novo coronavírus, o caso de Santo Isidro foi revelado em sua integralidade. A pandemia só arrefeceu depois da terceira onda e com a vacina escolhida entre muitas pela Organização Mundial da Saúde. No todo, o vírus assolou a humanidade por dois anos.
Santo Isidro é um lugarejo no interior do Nordeste brasileiro que contava, na época da pandemia, com 531 habitantes. Uma pequena agricultura de subsistência completada com a criação de alguns animais era a base da economia local. Algum excedente era vendido para outros lugares. Semanalmente, um caminhão ia até lá levando artigos necessários, como alimentos industrializados, roupas e remédios, aproveitando para comprar parte da produção agrícola e artesanal do lugarejo.
Tratava-se de um local tipicamente nordestino, com casas baixas, coladas e pintadas em cores muito vivas. Povo pobre e tranquilo formado por velhos e crianças. Os jovens saíam para os grandes centros à procura de emprego, pois não queriam ficar na roça trabalhando nas atividades tradicionais de seus pais e avós. Em todo o Nordeste, esse fenômeno estava ocorrendo.
Não havia médicos em Santo Isidro. A pequena população recorria a uma velha senhora, que atuava como parteira e curandeira. Também uma vez por semana, Dr. Gerson, médico do estado, visitava o lugar para atendimento de rotina. Ele viajava no seu próprio automóvel, com todas as despesas custeadas pelo governo estadual, além do salário. As doenças mais frequentes podiam ser curadas de forma simples com remédios fornecidos pelo próprio Dr. Gerson. Se aparecia um caso especial, ele o encaminhava para a capital ou para o centro mais próximo com capacidade de atendimento. Esse transporte geralmente era feito por ele mesmo em seu carro.
Quando a pandemia começou, poucos cientistas e médicos acreditaram que ela tomaria as proporções que tomou no Brasil. Pensou-se que o primeiro caso em São Paulo seria contido com a contaminação de poucas pessoas. Ela nunca atingiria Santo Isidro, lugarejo no fim do mundo. Mesmo assim, Dr. Gerson passou a ter cautela em suas visitas. Antes que se insistisse no uso de máscaras, ele passou a usá-las nos seus atendimentos para proteger seus pacientes, sobretudo os idosos. Os habitantes gostavam muito dele e achavam desnecessária a sua máscara. Mas ele respondia que o atendimento devia ser feito como um médico procede durante uma cirurgia: o uso de máscara para proteger o doente, não o médico. A explicação visava também desarmar qualquer impressão de que ele estava se protegendo da população.
Com o agravamento da pandemia, Dr. Gerson passou a usar sobre a máscara de pano também uma máscara de acrílico, além de luvas para exames tópicos. Entre uma visita e outra, Dr. Gerson testou positivo para a Covid-19. Certamente, ele contraiu o vírus em outro hospital em que trabalhava, não na remota Santo Isidro. Na última vez em que estivera lá, atendeu três pacientes: duas senhoras e um idoso muito querido na cidade. Antes de ser hospitalizado Dr. Gerson tentou contato com a comunidade. Lá, ninguém conhecia computador. Celular só mesmo daqueles antigos. Mesmo assim, nem todos possuíam um. O sinal era sofrível.
Ele pediu a seu filho que continuasse tentando contato com os três pacientes que atendeu na sua última vez. O filho tentou ir ao local, mas foi desaconselhado pelo próprio pai, já que ele também podia estar contaminado. A recomendação foi entrar em contato com o motorista de caminhão que visitava a remota localidade uma vez por semana. Mas este já havia passado dos 60 anos e suspendeu suas viagens. Antes de morrer, Dr. Gerson insistiu muito com seus colegas sobre o risco que sofria a população isidrense, mas todos estavam muito envolvidos com os contaminados pelo vírus, que entupiam os hospitais. Santo Isidro não era prioridade e foi deixado à sua própria sorte.
As três pessoas atendidas pelo Dr. Gerson na sua última ida ao lugarejo manifestaram sintomas da doença duas semanas depois. Elas a contraíram, mesmo com todas as precauções tomadas pelo médico. Todas elas tinham família numerosa, principalmente irmãos, cunhados e netos. Sem se preocuparem em tomar cuidado, os três contaminaram outras pessoas que, por sua vez, passaram o vírus adiante. A filha de um dos moradores do local e que não morava mais lá conseguiu fazer contato com sua mãe e ficou sabendo de tudo. Ela quis visitar sua família, mas teve receio de também se contaminar. Parecia mais seguro ficar num centro maior e se proteger em casa do que voltar para seu lugar de origem. Na cidade onde morava, havia recursos. Em Santo Isidro não havia nenhum. A notícia da morte do Dr. Gerson abalou todos os habitantes do lugar.
Essa moça avisou as autoridades sobre a situação crítica de Santo Isidro. Foi pior, pois, por determinação governamental, a localidade toda foi isolada do mundo. Quem estava dentro não saía e quem estava fora não entrava. Os cuidados aos doentes ficaram por conta da curandeira, que também contraiu a doença e morreu. Ao mesmo tempo em que o lugarejo tinha a vantagem de ficar isolada do mundo, mostrava a desvantagem de não contar com ajuda por ser distante, desconhecida e desimportante para os governos municipal, estadual e federal. Havia prioridades e Santo Isidro não estava entre elas.
Abandonado à sua sorte, o povo isidrense teve de se virar. Morreram idosos e crianças. A própria população teve de enterrar seus mortos e cuidar dos doentes. Todos contraíram a doença. Mal sabiam eles que o governo federal tomara a decisão de transformar Santo Isidro num laboratório a céu aberto. O lugar estava fortemente isolado. Um belo dia, apareceram por lá um médico e dois enfermeiros do exército acompanhados de um soldado que dirigia um jipe. Todos estavam usando equipamento de proteção máxima. A finalidade não era levar qualquer socorro, mas examinar o comportamento de um vírus numa comunidade pobre e isolada.
Dos 531 habitantes, 327 haviam morrido. Os 204 restantes haviam adoecido e se curado. Todos foram meticulosamente examinados. Os testes sorológicos revelaram que a maioria tinha desenvolvido anticorpos. A minoria continuava vulnerável. O vírus continuava circulando. Por que uns desenvolvem anticorpos e outros não? Havia crianças e idosos aparentemente imunes enquanto que outro grupo, também de crianças e de idosos, continuava vulnerável. Haveria uma explicação genética? O médico observou que a maioria das pessoas era de parentes e contraparentes, resultando de cruzamentos familiares frequentes, o que era normal numa localidade pequena como Santo Isidro. Seria esse o segredo da resistência? Mas os grupos endogâmicos costumam apresentar fragilidades genéticas.
Os resultados foram levados para um centro de pesquisa a fim de serem examinados. Era isso mesmo: muitos imunes e poucos não. Dois meses depois, os cientistas envolvidos na experiência secreta foram surpreendidos pela notícia de uma segunda onda em Santo Isidro. O resultado foi impressionante. Primeiro, os que se julgavam imunes contraíram o vírus novamente. Os aparentemente não-imunes morreram. Uma conclusão se impunha, aliás duas: os anticorpos dos imunes não evitaram que eles contraíssem novamente o vírus. Ao mesmo tempo, quase todos os que se julgavam imunes resistiram à segunda onda e desenvolveram mais ainda anticorpos.
A população estava agora restrita a 146 habitantes. Concluiu-se que a idade pesava na sobrevivência e na produção de anticorpos, mas não explicava tudo. Muitos jovens morreram na primeira e na segunda ondas. Médicos e cientistas concluíram, com base nos resultados colhidos em Santo Isidro, que a produção de anticorpos não imunizava definitivamente aqueles que contraíam a doença. Tratava-se de uma conclusão precipitada, pois as condições sociais do lugarejo nordestino eram restritas.
Chegou o ano de 2021 com uma vacina produzida em tempo recorde. Os idosos foram os primeiros a recebê-la. Depois, as outras faixas etárias. Por último, os sobreviventes de Santo Isidro. A partir de então, a vacina passou a ser ministrada anualmente, como acontece com a vacina contra influenza.
Em 2030, Alonso, filho do Dr. Gerson, estudou em sua tese de doutorado o caso de Santo Isidro. Os documentos foram parcialmente liberados. A divulgação de Alonso ganhou o mundo por ter Santo Isidro se transformado num laboratório humano sem que princípios éticos básicos fossem observados. O presidente do Brasil na época perdeu as eleições de 2022. Na de 2024, ele se elegeu deputado novamente. Em 2030, ele estava recolhido em sua casa, na Barra da Tijuca, depois de ter sido considerado culpado por crimes contra a humanidade pelo Tribunal de Internacional de Haia.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS