Sérgio Arruda de Moura: Literatura e droga
Sérgio Arruda de Moura 15/06/2020 17:20 - Atualizado em 24/07/2020 18:49
As drogas sempre existiram — e a literatura nunca ignorou isso. Nem tanto por ter surgido já como tabu e, consequentemente, com cerceamentos de toda ordem, poetas e artistas de uma forma geral viram na sua natureza um certo simbolismo libertário e de escape.
O primeiro contato que tive com literatura poetizando a droga – e mais que isso, o desencanto, o descalabro e a autodestruição — foi Uivo, de Allen Ginsberg, de 1956, junto com as demais publicações que marcaram a chamada geração beat norte-americana, entre eles o celebríssimo entre os jovens On the road, de Jack Kerouac, publicado no ano seguinte. Desnecessário dizer que causaram e tiveram problemas pela ousadia. Na condição de poetas — e ainda mais em contextos da contracultura e na irreverência alimentada pelos rumos medíocres que a sociedade e os costumes tomavam —, não tinham limites, e apareciam à tona dos versos em toda a sua crueza existencialista, devidamente tocados pela droga e pelo álcool. O resultado foi uma poesia que mais parecia trombetear o fim do mundo, como se este estivesse vindo abaixo, tal o coro do descontentamento e da desilusão. Senão vejamos os versos iniciais de “Uivo”:
Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura,
morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro
negro de madrugada em busca
de uma dose violenta de qualquer coisa
"hipsters" com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato
celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando
sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente....
De tempos em tempos, uma geração inteira de poetas se mata como forma de marcar sua passagem pelo campo. A poesia cobra caro pela eternidade.
No rock dos anos 1980, o cantor e compositor Cazuza dava a tônica do desespero do poeta embrutecido pelo mundo certinho demais, tão inútil à criação e ao canto poético, razão que o conduz ao sarcasmo e à ironia. Na canção “Só as mães são felizes”, ele se reporta a esse mundo e se subtrai dele, mostrando um outro, monstruoso, repleto de outros párias da sociedade – certamente os poetas – que, como ele, ao negarem o mundo negavam a si mesmos. Vejamos se não é isso exatamente o que ele proclama:
Você nunca varou a Duvivier às 5
Nem levou um susto saindo do Val Improviso
Era quase meio-dia no lado escuro da vida
Nunca viu Lou Reed "Walking on the wild side"
nem Melodia transvirado rezando pelo Estácio
Nunca viu Allen Ginsberg pagando michê na Alaska
nem Rimbaud pelas tantas negociando escravas brancas
Você nunca ouviu falar em maldição
nunca viu um milagre
Nunca chorou sozinha num banheiro sujo
nem nunca quis ver a face de Deus
Já frequentei grandes festas nos endereços mais quentes
Tomei champanhe e cicuta com comentários inteligentes
Mais tristes que os de uma puta no Barbarella às 15 pras 7...
Esse desejo do poeta de se evadir de um mundo que não lhe interessa não é uma novidade. Poderia chamar aqui para argumentar junto comigo todos os simbolistas franceses, mais os românticos, enfim de quase toda a tradição europeia e brasileira desde o início do século XIX, começando com Thomas de Quincey, de Confissões de um comedor de ópio, de 1821.
É neste fascínio em torno da droga, principalmente o ópio e o haxixe, que tem início a aventura de Baudelaire em torno de sensações e experiências supranaturais sobre as quais escreveu um verdadeiro tratado sob a forma de poesia em prosa e que intitulou convenientemente de Paraísos artificiais. É, no fim das contas, um ensaio afetado pelo espírito de um poeta impetrando uma autoanálise. Cauteloso com o lado agressivo da droga, mas completamente domado pelo estado de torpor que ela lhe provoca, e que já a partir do título suscita a contradição, o seu “Paraísos artificiais”, iniciado em 1843, aos 22 anos, é uma viagem em busca de si, tendo como guia na descida ao inferno que De Quincey, a quem tanto admirava, impetrou para si como usuário de ópio. Baudelaire queria, a partir dele, “uma análise dos efeitos misteriosos e dos prazeres mórbidos que estas drogas podem provocar, dos inevitáveis castigos que resultam de seu uso prolongado e, enfim, da própria imortalidade, implícita nesta perseguição de um falso ideal”.
Os poetas e romancistas de sua geração tomaram conhecimento dos efeitos do haxixe sobre a consciência, incluindo Balzac, e com mais afinco, Gauthier, todos reunidos em torno de um certo Clube dos Haxixeiros. O haxixe para Baudelaire, longe da apologia pura e gratuita, não revela ao indivíduo nada além do próprio indivíduo, sendo assim a experiência psicotrópica uma experiência que ele não julga controlada mesmo tendo sido capaz de versar racionalmente sobre ela.
Alcançar a largueza dos sentidos, extrapolá-los, é um sonho de grandeza do homem e, por extensão do poeta. Depois de considerar, ao final, os benefícios do vinho como superiores aos do ópio e do haxixe, Baudelaire conclui junto com o filósofo Auguste Barbereau:
Não compreendo por que o homem racional e espiritual serve-se de meios artificiais para alcançar o êxtase poético, pois o entusiasmo e a vontade bastam para elevá-lo a uma existência supranatural. Os grandes poetas, os filósofos, os profetas são seres que, pelo puro e livre exercício da vontade, alcançam um estado onde são, ao mesmo tempo, causa e efeito, sujeito e objeto, magnetizador e sonâmbulo.
E Baudelaire concordou plenamente com ele.

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