Afrânio Sobral: Formiga cega
*Afrânio Sobral 12/06/2020 21:13 - Atualizado em 24/07/2020 18:48
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Sabemos muito bem que, por trás de um narrador onisciente, sempre existe uma pessoa que escreve. O narrador onisciente sabe de tudo no tempo e no espaço. Inútil os personagens tentarem esconder algum objeto em locais inacessíveis ou inimagináveis. O narrador sempre o encontrará e o revelará ao leitor. Inútil, os personagens ocultarem o mais irrevelável segredo no fundo de suas mentes. O narrador onisciente o trará à tona. Ele sabe o que aconteceu em qualquer lugar do espaço e em qualquer ponto do tempo. Claro, ele criou tudo. Ele se assemelha a um deus onipotente, criando um mundo de acordo com sua vontade num conto, novela ou romance. Ali, ele exerce seu poder absoluto.
Mas o narrador onisciente pode abdicar do seu poder e se tornar um narrador pessoal, que vem a ser uma espécie de personagem de si mesmo. Nesse caso, seu poder é limitado. Mas, um narrador pessoal não poderia ser o autor da história que se segue, pois seria necessário chegar ao fim dela para depois escrever. Ele estaria morto quando mais precisaríamos dele. E não haveria leitor. Inútil também recorrer ao narrador onisciente. Ele também estaria morto, já que se trata de um ciente disfarçado de onisciente.
Assim, só nós, seres incorpóreos e impessoais, habitando espaços etéreos, podemos contar tudo o que aconteceu para ninguém. Pode ser que algum habitante refugiado em algumas poucas ilhas ou algum ser proveniente de outro astro possa um dia saber tudo o que aconteceu na Terra. Mas haveria um problema intransponível: não existe nenhuma superfície material em que o relato tenha sido registrado, pois nós, de uma região sideral inefável, de tudo sabemos, mas não escrevemos. Portanto, falamos para ninguém.
E que ninguém nos ouça sobre o que aconteceu com a Terra. Tudo começou numa região recôndita da África. Búfalos pastavam tranquilamente quando foram atacados por um exército de formigas cegas e devorados em algumas horas. Os nativos estavam acostumados com a voracidade dessas formigas. Inclusive, algumas nações africanas entregavam o inimigo vivo e imobilizado à sanha dessas formigas. A morte era simplesmente horrível.
O que mais impressionou os nativos no ataque inicial das formigas cegas foi, além dos búfalos reduzidos a seus esqueletos, terem as formigas devorado todos os animais que estavam no local, as árvores e a relva. As árvores foram reduzidas a seus galhos depenados e os campos se tornaram superfícies desoladas. Logo a notícia chegou à capital do país e ao mundo. É claro que o caso atraiu a atenção de cientistas. Uma delegação foi constituída para examinar o que aconteceu.
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Estima-se que as formigas tenham se originado há cento e trinta milhões de anos. Elas estavam presentes em todos os continentes, só não conseguindo se adaptar às condições climáticas das regiões polares. Enfrentaram calor e frio durante a sua história. Sobreviveram. Segundo cálculos de cientistas, 10 quintilhões de formigas viveram na Terra, distribuídas em 10.000 espécies. Todas elas se reuniam numa única família: a formicidae. Pesquisas demonstraram que toda essa legião de insetos derivava de um único ancestral. Elas ganharam todos os continentes antes de sua separação progressiva, processo que se iniciou em torno de 66 milhões de anos passados.
Entre todas as espécies de formigas, somente a rainha tinha a tarefa de reprodução. Depois de fecundá-la, os machos eram mortos. As demais integrantes dos formigueiros se distribuíam em soldados e operárias, sendo estas apenas as fêmeas. A literatura humana enalteceu a formiga como símbolo de trabalho e disciplina. No Maranhão colonial, chegou a ser promovido um julgamento sobre a saúva num convento. Os franciscanos foram seus advogados de defesa. Elas acabaram sendo absolvidas, mas deviam se contentar com o espaço que os padres lhe reservavam. As saúvas eram inteligentes, mas ignoraram completamente o julgamento e continuaram a ocupar o terreno que desejavam. Eram inteligentes, mas inconscientes e indiferentes aos interesses humanos.
Ao contrário do que pensavam os humanos, as formigas se organizavam de maneira espartana. Elas roubavam ovos de formigueiros alheios e escravizavam os filhotes quando nasciam. Elas também ignoraram solenemente as fronteiras nacionais. Basta dizer que o maior formigueiro do mundo situava-se na Europa sob dez países. Ele chegou a alcançar seis mil quilômetros de extensão. Se fosse possível reunir todas as formigas do mundo, elas representariam 20% da biomassa animal terrestre, superando todos os vertebrados juntos. Poucos humanos sabiam sobre o perigo que as formigas representavam. Eles nunca se importaram com aqueles minúsculos animais sob seus pés. A maioria viveu e morreu sem saber que as formigas tinham dois estômagos, um para armazenar a comida que a alimentava e o segundo para guardar os alimentos compartilhados com as outras.
Só os entomólogos sabiam que as formigas não tinham pulmões e que respiravam oxigênio por orifícios localizados nos lados de seus corpos. Só os entomólogos sabiam que elas não tinham ouvidos e que percebiam ruídos por sensores especiais em suas patas e articulações. Só os entomólogos sabiam dos perigos representados pelas formigas, mas acreditavam que eles estavam sob controle delas próprias. Eles acreditavam no “efeito tamanduá” de controle biológico dos minúsculos animais.
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Aquele ataque de formigas cegas africanas a um rebanho de búfalos pareceu estranho aos nativos e aos cientistas. Eles conheciam a agressividade delas, mas consideraram que, no final, elas eram úteis como garis que consumiam animais mortos e limpavam o terreno. No máximo, matavam outros invertebrados e alguns lagartos. Nômades e cegas, elas se orientavam pelo olfato. Sempre marchando em linha reta, elas causavam estragos, mas sempre sob controle delas sobre elas mesmas.
Os ataques começaram a se tornar mais frequentes e mais destruidores. Várias comunidades nativas começaram a se transferir para os arredores das cidades. Houve casos de vacas, cabras, aves de criação, cachorros e gatos serem atacados e devorados. Os camponeses ficaram apavorados com o novo comportamento. Os cientistas não se contentaram em observar a agressividade e a carnificina das formigas. Houve casos de canibalismo, mas eram raros. Então, munidos de trajes especiais reforçados, os estudiosos recolheram amostras de grupos para estudos em laboratórios de vários países do mundo.
Comunidades de formigas africanas cegas foram levadas para os Estados Unidos, China, União Europeia e outros centros de pesquisa. Enquanto eles se dedicavam ao comportamento delas em sociedade, notícias estranhas começaram a ser divulgadas. No sul dos Estados Unidos, formigas lava-pés estavam entrando nas casas de muitas pessoas e devorando alimentos encontrados sobre móveis. Muitas pessoas tinham sido picadas por elas. Algumas acabaram em postos de atendimento pelo excesso de toxinas ou por serem alérgicas.
As lava-pés já haviam chegado aos Estados Unidos há bastante tempo, partindo da América do Sul. Por ocasião de furacões, elas saíam de seus formigueiros e formavam verdadeiras tropas de ataque. Embora preocupante, entendia-se esse comportamento como normal. Para atravessar áreas alagadas, elas formavam jangadas com seus minúsculos corpos agrupados.
Na Amazônia, um verdadeiro furor de formigas de correição, nome genérico para cerca de 200 espécies carnívoras, estavam causando estragos nunca vistos. Normalmente, quando essas formigas saíam para caçar, suas vítimas eram outros insetos. Nessas ocasiões, aves se aproveitavam da fuga das vítimas para se alimentar. Os tamanduás sugavam essas formigas em verdadeiros banquetes. O encontro de vários esqueletos de tamanduás descarnados pelas formigas assustou. Outros animais também foram literalmente consumidos e de um bebê humano sobraram apenas seus ossos. Por sua vez, as tocandiras estavam dando ferroadas muito mais doloridas que de costume.
Em outros lugares da América do Sul, as saúvas passaram a atacar em massa e impiedosamente. De longa data, são conhecidas a pertinácia e o poder de destruição das saúvas sobre lavouras. Houve um momento, no Brasil, em que os agricultores julgaram as saúvas invencíveis e desistiram da luta. Lima Barreto registrou o poder destruidor da saúva no romance “Triste fim de Policarpo Quaresma”, que talvez ainda volte a ser lido por alguém.
Nem mesmo as formiguinhas de cozinha, aquelas pretinhas e minúsculas que se imiscuíam em tudo para tirar uma migalha de pão ou de qualquer outra comida para viver à sombra dos moradores de uma casa; aquelas que visitavam o fundo de xícaras atrás de um grãozinho de açúcar; aquelas que as pessoas ingeriam sem perceber e que, avisadas, davam de ombros e afirmavam que elas faziam bem à vista; essas inofensivas formigas começaram a revelar uma fome desmedida. Elas eram encontradas nos fornos e no interior das geladeiras, sempre deixando sua marca em abóboras, chuchus, cenouras, tomates, doces, comidas frias e ovos, que elas perfuravam com voracidade.
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Dois meses depois do episódio do búfalo devorado até o esqueleto, o mundo estava tomado por formigas de todas as espécies. Do Canadá à Patagônia, da Rússia ao Sri Lanka, do Saara à África do Sul, a formigas partiram para o ataque devorando animais e vegetais. Elas viajaram o mundo de navios e de aviões, ocultas em lugares inimagináveis. Chegaram à Austrália e à Nova Zelândia, alcançando ainda outras ilhas. Cabe observar que, mesmo nas ilhas mais distantes, havia formigas que viviam lá há muito tempo. Elas também saíram dos formigueiros para o ataque.
O mundo científico ficou perplexo. Aventou-se que esse levante de insetos não poderia ser mais devastador que o causado pelo novo vírus corona na pandemia de 2020. Depois que ele foi controlado pela criação de uma vacina, a comunidade científica alertou os habitantes e governantes do mundo quanto ao risco de novas pandemias, mas sempre tendo em vista a emergência de novos vírus. Formigas ou quaisquer outros insetos jamais, pois eles são visíveis, mesmo os menores, e podem ser exterminados com produtos químicos.
De qualquer maneira, guardamos, em 2047, a advertência feita por Edward Wilson, grande biólogo e entomólogo no início do século. Segundo ele, havíamos entrado numa fase de extrema imprevisibilidade e de risco. Coisas antes incalculáveis tornavam-se possíveis sem que pudéssemos prever. Cientistas de todo o mundo, em convenção patrocinada pela ONU, concordaram que o comportamento anormal das formigas derivava dos efeitos das mudanças climáticas sobre elas.
Países do mundo inteiro formaram brigadas superprotegidas para combater as formigas com produtos químicos. Haveria perigo para o ser humano com a aspersão generalizada de formicida. Já se conhecia a capacidade das saúvas de resistir a venenos por meio de mutações que aumentavam sua resistência. Mas, se foi possível estabelecer controlo sobre as saúvas, certamente seria possível encurralar outras espécies. Não foi. O caso da saúva exigiu tempo, algo que a humanidade não dispunha em 2047.
Os primeiros casos de pessoas mortas e devoradas por formigas não tardaram a acontecer. Idosos, adultos e crianças eram transformadas em esqueletos depois de um processo doloroso e brutal de morte. Nunca se tinha visto algo parecido desde a origem do Homo sapiens. Exércitos de formigas invadiam casas, edifícios, fazendas e tudo devoravam. As árvores não morriam, mas ficavam completamente desfolhadas. Os animais selvagens e domésticos foram extintos. Escaparam apenas os humanos e animais que viviam nos polos e em algumas ilhas. No círculo polar ártico, os descendentes dos esquimós, os ursos polares, as focas, os leões marinhos e outras espécies do grupo dos pinípedes.
No sul do planeta, as hordas de formigas, agora todas elas peregrinas e nômades, detiveram-se nas proximidades do estreito de Magalhães, cercando os grupos de cientistas e pesquisadores que atuavam no Antártico. Eles resistiram enquanto havia provisões. Tentaram se adaptar às condições climáticas, mas os combustíveis acabaram. Eles não aprenderam a caçar. Não houve nenhum grupo humano que tenha se adpatado ao continente Antártico para desenvolver uma tecnologia de sobrevivência que permitisse as pessoas nascidas e criadas num contexto ocidental e ocidentalizado criar um pacote mínimo de sobrevivência. Todos pereceram.
Por outro lado, habitantes de algumas ilhas escaparam do ataque massivo das formigas. Entre os seres humanos que sobreviveram, o nível de civilização sofreu uma queda de milênios. Eles praticamente voltaram a condições neolíticas. Restaram poucas espécies animais, especialmente invertebrados de água doce e marinhos, peixes e algumas aves. As árvores voltaram a emitir folhas, flores, frutos e sementes, podendo recuperar as áreas degradadas. A vida não foi extinta completamente. Nem mesmo a humanidade.
Não encontrando mais alimentos, as formigas se devoraram, restando delas alguns exemplares de várias espécies. Aos poucos, as rainhas foram recuperando as populações. Como as formigas desativaram as atividades humanas responsáveis pela emissão de gases causadores das mudanças climáticas, poluição, desmatamento, aceleração dos ciclos de nitrogênio e fósforo, embora tenham extinto muitas espécies animais, as condições climáticas que mudaram seu corpotamento voltaram ao normal. As formigas também voltaram ao normal.
Cem anos já se passaram do ataque massivo das formigas. A natureza se regenera. As matas se recompõem. Os poucos humanos sobreviventes organizaram-se em comunidades simples, produzindo apenas para consumo e sobrevivência.
Nós registramos essa história no nada. Não sabemos como passá-la aos humanos que sobreviveram. Dependerá deles conhecer detalhes dessa catástrofe. Mas é bem provável que eles não se interessem por ela.

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