Cândida Albernaz: Conto - Um choro engolido
Cândida Albernaz - Atualizado em 09/10/2020 14:55
Estou aqui sentado, pensando em tudo o que vivi. Não havia mais tempo para mudar nada. O que fiz decidiu meu destino.
Lembro ainda de minha infância que, na verdade, não está tão distante assim.
Meus pais, que nunca tiveram muito a oferecer financeiramente, costumavam, nos domingos, me levar com outros três irmãos para o jardim da cidade, onde a entrada era franca, e o espaço, de todos. Corríamos, jogávamos bola, brincávamos de polícia e bandido como se ali fosse o quintal que nunca tivemos. No início da tarde mamãe nos oferecia um sanduíche de pão com ovo trazido de casa.
Estávamos sempre juntos e, apesar das dificuldades, tínhamos uma espécie de alegria a nos acompanhar, acredito que devido ao temperamento de meu pai, que acreditava que as coisas no dia seguinte sempre seriam melhores que as do anterior.
Hoje, sentado neste banco, esperando a sentença, viro-me para trás e vejo os olhos vazios de mãe e a cabeça baixa de papai, que costumava se orgulhar de ser honesto.
Não fui sempre este homem que hoje rouba e, se preciso, mata.
Ainda garoto, recordo de meu pai chegar a casa arrasado, sem o seu assovio costumeiro, porque perdera o emprego e tinha tantas bocas a sustentar. Nunca ficamos um dia sequer sem ter o que comer. Sem o trabalho, fazia qualquer tipo de serviço que aparecia.
Chegando da rua tarde, exausto, ainda consolava mamãe dizendo que era apenas um período ruim que estávamos vivendo, e que logo tudo voltaria ao normal.
Numa noite, ouvi os dois conversando antes de dormir, e mamãe dizia ter fome, mas preferia nos dar o que comer, pois éramos crianças. No dia seguinte, inventei uma dor na barriga falando que não conseguia engolir nada para que ela ficasse com minha parte.
Passado alguns dias, minha mãe, que tinha as pernas cheias de varizes que a faziam chorar escondido, de dor, estava no posto de saúde com o irmão caçula no colo, esperando um atendimento que chegou tarde demais.
Com 13 anos, ainda franzino, apanhando sempre dos colegas mais velhos, numa tarde me arrastaram para os fundos da escola e fui currado ali mesmo, sem chance de defesa. Cheguei a casa com a calça suja de sangue, corri até o tanque que ficava na cozinha e lavei-a rápido, antes que alguém visse e fizesse perguntas que não teria coragem de responder.
Senti que não tinha mais porque achar que a vida era a que meus pais mostraram até aquele momento.
Quando, depois de algumas facadas, vi o corpo do homem que roubara e que tentara reagir, no chão, consegui fugir. Não adiantou. Dei azar e me pegaram. Agora estava ouvindo este babaca do juiz decidindo parte do meu futuro.
Não mais a bola, não mais o meu irmão, não mais a comida pobre, mas que nos alimentava, não mais o pai com dignidade, não mais o garoto que fui.
Não tinha pena da vida, porque ela não tinha pena de mim.
Habituara-me e passara a aceitar o que ela oferecia. Tirava dela o que podia me dar.
No banco dos réus, o olhar morto que agora era meu. Na garganta, o choro engolido entupindo a visão do que poderia ter sido.

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