Arthur Soffiati: Reflexões sobre as pandemias (V)
Arthur Soffiati 10/05/2020 13:02 - Atualizado em 13/05/2020 19:04
1 - America first. América primeiro, ou seja, antes de tudo e de todos, os Estados Unidos, foi o lema usado por Donald Trump em sua campanha para a presidência e que continua sendo usado por ele depois de eleito. Invocando o lema, ele saiu do Acordo Transpacífico, da Unesco, detonou o Nafta, faz o que pôde para impedir a entrada de imigrantes, travou guerra comercial com a China (que ainda não acabou). Enfim, busca um isolacionismo impossível nos dias atuais. Não se pode mais abandonar a globalização. Apenas melhorá-la. Primeiro os Estados Unidos como a maior economia do mundo. Primeiro os Estados Unidos como epicentro mundial da pandemia, com mais mortos que o atentado às Torres Gêmeas e que a Guerra do Vietnã.
2 - Comandante comprado. Como militar, Bolsonaro deveria considerar o novo Corona vírus com um inimigo a ser combatido sem tréguas. Mas, nessa guerra, de nada valem as armas tradicionais. Nem revólver, pistola, fuzil, canhão, granada, mísseis, bomba atômica. Os militares devem ser substituídos pelos cientistas, médicos, enfermeiros, auxiliares, padioleiros, ambulancistas e coveiros. Valem as táticas de guerra, que a imprensa chama de estratégias. Tática é o meio de se chegar à estratégia, que é o fim. Tática é isolamento físico horizontal e vertical. Informação é fundamental para alimentar as táticas, mas não se pode gastar muito tempo colhendo informações, como está fazendo o novo ministro da Saúde. O comandante em chefe da guerra deve estar sintonizado com os comandantes regionais (governadores e prefeitos). Mas Bolsonaro não está nem aí para a pandemia. Tem se mostrado um militar medíocre e incompetente. Ele estimula seus soldados a se exporem ao fogo inimigo e não se importa com as baixas. Ou será que nosso capitão foi comprado pelo exército inimigo formado por empresários e banqueiros?
3 - Bode expiatório. Um dos grandes ensinamentos das epidemias é a procura de explicações. O mais comum é buscar um bode expiatório. Na peste negra foram os judeus, as mulheres consideradas bruxas e os gatos. Eles atraíam propositalmente as doenças. Era preciso exterminá-los. Por ocasião da gripe espanhola, a Espanha passou a ser vista como a criadora e a exportadora da doença, quando, na verdade, apenas teve a coragem de romper o silêncio internacional e revelar que muitas pessoas estavam morrendo por uma doença contagiosa que, supõe-se, teve origem nos Estados Unidos. Agora, a grande culpada é a China. O covid-19 (ou sars-cov 2) teria escapado de um laboratório de lá ou propositalmente liberado para provocar uma pandemia, ainda que chineses tenham sido contaminados e morrido. A intenção da China era atingir o mundo todo para vender equipamentos de proteção individual, além de respiradores. Trata-se de uma explicação falsa, mas fácil de ser usada por fanáticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro, acompanhados de seus seguidores.
Outra explicação irracional joga a culpa nos ombros dos humanos, que estariam sendo castigados por Deus. Minha culpa, minha máxima culpa. Essas explicações nos exoneram de pensar e concluir que a humanidade, vivendo num sistema vulnerável a perigos, está sujeita a perigos e que ela, apenas ela, é responsável pelo que acontece de bom e de ruim.
4 - Epidemia em campo virgem. O historiador Alfred Crosby estudou o impacto causado pelos europeus sobre os povos nativos da América e da Oceania nos séculos XV e XVI. As sociedades que viviam nesses dois continentes desconheciam doenças banais para nós atualmente, como a gripe. Atuando sobre campo virgem, vírus e bactérias para as quais os europeus já haviam adquirido anticorpos, mataram muito mais nativos do que as armas de fogo. Um médico mostrou recentemente que, diante da covid-19, toda a humanidade constitui um campo virgem, pois o vírus era desconhecido até então. A diferença é que, agora, sabemos que existem vírus e os estudamos para conhecer seu comportamento e fabricar armas contra ele. Mas devemos padecer algum tempo antes que as armas sejam fabricadas.
5 - Ilhas. Li um artigo de jornal sobre os habitantes da ilha de Tristão da Cunha, considerada a mais isolada do mundo. Ilha vem de isola, insula, lugar isolado. A população de Tristão da Cunha resume-se a 253 habitantes. Por razões climáticas e hereditárias, eles têm predisposição à asma. Sua ligação com o mundo se faz por barcos que partem da África do Sul e navegam sete dias até a ilha. O pequeno e acidentado espaço insular, além dos ventos, não permite a construção de uma pista de pouso para aviões. As comunicações eletrônicas são difíceis. Outra ilha que muito me interessa é Sentinela do Norte, que fica em águas territoriais da Índia e é habitada pelo povo mais isolado do mundo. Esse povo vive ainda em condições paleolíticas, coletando, pescando e caçando. Seus integrantes são agressivos. Os poucos que se atreveram a fazer contatos foram mortos. A Índia proíbe a entrada de estranhos na ilha. Ela é habitada pelo povo mais feliz da Terra. Não se conhece rádio, televisão, computador, internet e outras redes sociais. Certamente, o vírus não entrará lá.
6 - Depois da pandemia. Há otimistas que garantem um mundo novo depois que a pandemia passar. Não me incluo entre eles por entender que tudo voltará a ser como antes. Mesmo assim, reservo espaço para a incerteza e a imprevisibilidade. No máximo, eu gostaria que as ideias neoliberais fossem definitivamente arquivadas e que governantes, economistas e população se convencessem da importância do Estado de Bem-Estar. Considero improvável o retorno ao projeto socialista. No mínimo, vejo as práticas econômicas comunitárias como um avanço. Elas produzem itens necessários e de pouco impacto ambiental. Um mundo regido pelo programa ecologista é minha utopia. Também não creio que ele seja viável num mundo dominado pela economia capitalista.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS