Num mundo em que as redes sociais reduziram a importância do livro e da leitura e no qual o culto ao presente domina, é notável que autores gregos e latinos, além de chineses e japoneses pré-ocidentais estejam merecendo, em pleno início do século XXI, edições bilíngues com traduções primorosas. Quase silenciosamente, forma-se uma plêiade de estudiosos e eruditos dedicados a um conhecimento cada vez mais desprezado pela cultura de massa global. Sei perfeitamente que tais livros devem ter pouca procura. Mas existe uma minoria insignificante que gosta da alta literatura, ainda que de civilizações distintas da ocidental e já soterradas pelo tempo. Hoje, todas as civilizações que antecederam o ocidente globalizado fazem parte da sua herança cultural.
As editoras responsáveis por essas edições são a 34, a Autêntica, a Perspectiva e a Ateliê. O espírito de Tácito não tem a mínima ideia de que o seu “Diálogo dos oradores” (Autêntica, 2014) mereceu reedição de ótima qualidade em português. Sexto Propércio ganhou nova edição de suas “Elegias” (Autêntica, 2014), assim como Públio Ovídio Nasão teve seus “Fastos” (Autêntica, 2015) trazidos a lume. Virgílio ganhou roupa nova para sua “Eneida” (Editora 34, 2014). A poesia homoerótica latina mereceu uma antologia reunida em “Por que calar nossos amores?” (Autêntica, 2017), organizada por Raimundo Carvalho, Guilherme Gontijo Flores, Márcio Meirelles Gouvêa Júnior e João Angelo Oliva Neto.
A Editora 34 relançou “Metamorfoses”, de Ovídio (2017), “As Traquínias” (2014), de Sófocles, e “Safo — fragmentos completos”, com tradução e notas de Guilherme Gontijo Flores (2017). Já a Perspectiva nos brindou com “Lírica Grega, hoje” (2017), segundo a visão de Trajano Vieira. Por fim, Rodrigo Garcia Lopes nos ofereceu os “Epigramas” (2017), de Marco Valério Marcial.
De todos eles, destacarei os fragmentos completos de Safo como uma homenagem às mulheres que desafiaram e desafiam o mundo androcêntrico, no passado e hoje, na nossa civilização e em outras, em nome de sua arte. Pouco se sabe sobre Safo, além de que ela foi mulher, poeta e musicista. Toda a sua música se perdeu, assim como a música greco-latina em geral. Da sua lírica, restou apenas um poema integral. Os muitos outros estão fragmentados de tal forma que da maioria restaram algumas poucas palavras. Safo é mais conhecida pela voz dos outros que por sua obra.
Vivendo em Mitilene, principal cidade da ilha de Lesbos, no final do século VII a. C. e nas primeiras décadas do século VI a. C., ela foi contemporânea de Alceu. Consta que foi professora de uma escola feminina e teve relações sexuais com moças jovens da ilha. O homossexualismo era comum entre homens na antiga Grécia, mas não entre mulheres, que mal podiam sair de casa. Corina e Erina também foram poetas, mas não causaram o impacto de Safo, a lésbica safada (alusão à ilha de Lesbos e ao nome da poeta). Consta também que ela foi casada e teve uma filha, assim como paixões por homens, entre eles seu colega e amigo Alceu.
Seu único poema ganhou tradução de vários eruditos, mas nunca toda a sua produção, ainda que em frangalhos. Novas descobertas permitiram um conhecimento maior da obra da poeta, mesmo que ela continue fragmentária. Seu poema completo que chegou ao nosso conhecimento é este: