Fotografias roubadas: O assalto do sossego
Mariana Luiza 22/01/2017 01:19 - Atualizado em 15/05/2020 19:24
Era frio, 4 graus Celsius. Mais uma vez São Paulo me fazia recordar Nova York. Minhas mãos quase congelando, se escondiam por dentro das mangas de um casaco despretensioso. Peguei o metrô, na Paulista, em direção à Estação da Luz. Uma travesti fazia ponto sorridente na passarela acima dos trilhos. Ela era loira, vestia um justíssimo top vermelho de mangas compridas, que deixava a barriga totalmente ao relento e parte dos seios siliconados à mostra; e uma calça jeans que lhe favoreciam as curvas e a bunda descomunalmente grande e redonda. Bunda, Quindim, banguela, xoxota, lengalenga, cachaça, encabular... Eu tinha acabado de sair do museu de língua portuguesa e as palavras de origem africana pipocavam na minha cabeça. Olhei para aquele derrière e comecei a rir. Ela sorriu pra mim, mesmo sem saber o porquê da minha risada, mas não quis posar pra minha máquina fotográfica. Eu fui embora arrependida por não ê-la fotografado, mesmo que escondido. Quando criei coragem para o criminoso ato de roubar-lhe uma pose e voltei ao lugar em que ela fazia ponto, já era tarde. Vai ver arrumou um cliente. Resolvi procurar alguém que quisesse posar pra mim. Embora nunca gostasse de fotografar escondido não sou desinibida o suficiente para pedir uma pose a desconhecidos e, por isso, sempre preferi as plantas e arquitetura às pessoas. A elas não precisava pedir autorização. Atravessei a rua para fotografar as raízes de um árvore que teimava em crescer no asfalto e um prédio cujos apartamentos exibiam em suas janelas roupas coloridas em varais improvisados.
Com a máquina pendurada no pescoço mirei para o prédio
quando, bem na minha frente, dois homens se atracaram numa briga de braços. Por um breve instante pensei que se tratava da luta entre dois amigos de colégio ou irmãos. Eles andavam tão próximos um do outro e pareciam trocar confidências ao pé do ouvido pouco antes da luta começar. Depois, quando um deles começou a gritar e o outro sacou de dentro da manga do casaco um facão do comprimento exato de seu braço eu percebi que se tratava de um assalto e que eu estava na tristemente famosa Cracolândia. Algumas pessoas ao nosso redor começaram a correr. Outras andavam aflitas, em passos tensos e apressados mas fingindo que nada demais estava acontecendo. Talvez não quisessem chamar a atenção do assaltante. E tinham aqueles que, como eu, ficaram ali, parados observando. É estranho ver as reações alheias próximas a um assalto e mais estranho foi pensar na minha reação. Eu, numa questão de segundos, pensei em fotografar a faca. Admirava-me a destreza em que o assaltante tirou aquela lâmina tão grande de dentro da manga do casaco. Tive medo dele enfiar a faca no outro rapaz e presenciar o assassinato. Mas não fiz nada para intervir e essa covardia me assustou um pouco. Era como se eu esperasse pela facada iminente num filme de guerra que acontecia bem na minha frente. Eu e aquelas outras pessoas queríamos ver sangue, como muitos querem quando vão ao cinema à procura de filmes de violência. Não gritamos. Não chamamos a polícia. Não tentamos salvar o rapaz num ato heroico. Não fizemos nada. Tudo isso durou apenas alguns segundos. O rapaz cedeu à faca e entregou a carteira ao assaltante que atravessou a rua calmamente com o facão reposto em seu lugar habitual e o bolso preenchido de vida alheia. A polícia que estava há poucos metros dali, nada viu. O dono da vida roubada também sumiu entre os transeuntes. E eu fiquei com a câmera na mão desistindo de fotografar as toalhas coloridas. Já estava farta de roubar fotos. Pouco antes, pedi informações a um policial sobre a direção do Memorial da Resistência.
Tive um pouco de medo do policial cujo uniforme me lembrava os oficiais do cadeirão do BOPE. Pensei no gás e no spray de pimenta lançado pela RONDA nos protestos pelo Passe Livre. Tive tanto medo que mal prestei atenção nas direções que ele me dava. Há poucas semanas, havia ficado frente a frente com policiais do BOPE atirando em protestantes de cima de um tanque de guerra. A lembrança assustadora somava-se ao recém presenciado assalto a facão. Cheguei ao Memorial, o antigo prédio do DOI-CODI tremendo de um medo tardio. Medo do assaltante. Medo da polícia fluminense. A perna treme de pensar na faca. A garganta incomoda por causa do gás, por causa dos sapos engolidos e da suprimida vontade de xingar a autoridade que abusa do poder. O corpo dói do impacto da bala que passou de raspão, mas que podia ter atingido em cheio na batata da perna, as costelas. Que podia ter sido munição de fuzil, o mesmo que sem receio é lançado sobre os corpos negros e periféricos. Sim naquela noite, na Zona Sul podia, mas que mesmo sendo de borracha nos mata aos poucos. O gás de efeito moral nos mata aos poucos. A truculência nos mata aos poucos. É uma morte viva. Morto vivo. Zumbis numa cidade sem lei. Visitei as celas do DOI-CODI. Pensei no frei Beto. Pensei na Dilma. Pensei no policial do BOPE que atirava na direção das janelas de luzes acesas que vigiavam a truculência da policia nas ruas do Flamengo. Pensei nos policiais que entram nas casas das favelas com balas letais e truculência infinitamente maior do que a destinada aos playboys da Zona Sul. Eu havia roubado fotos dos policiais da passeata do Papa dois dias antes daquele assalto. Não senti culpa alguma. O fiz escondido porque se pedisse para fotografar poderia ter minha câmera roubada. Ou ser agredida com um facão do tamanho do braço. Não, quer dizer, com uma arma que dispara tiros de borracha.

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