Roberto Dutra
19/02/2025 11:41 - Atualizado em 19/02/2025 12:23
Depois do Brasil, a Alemanha é o país que mais me interessa. Não apenas por ter passado uma parte de minha vida aqui para fazer meu doutorado e agora novamente para fazer um pós-doutorado, mas também por entender que o destino deste país, que liga geograficamente “ocidente” e “oriente”, importa bastante para os destinos da humanidade. Sempre acompanhei de perto a vida alemã e agora observo de dentro o momento mais dramático de sua história recente deste o fim da segunda guerra mundial. Acordando com Trump e dormindo sem rumo na policrise No próximo domingo, dia 23 de fevereiro, os alemães vão às urnas para escolher o novo parlamento, do qual deverá sair um novo governo para suceder a fracassada “coalizão semáforo” formada por socialdemocratas, liberais e verdes. A antecipação das eleições foi consequência direta da ruptura da aliança entre socialdemocratas e verdes de um lado e liberais de outro, na noite de 06 de novembro de 2024, no mesmo dia em que Donald Trump confirmou sua vitória avassaladora como presidente dos EUA. A data da ruptura não foi mera coincidência. De fato, o café da manha com Trump eleito ditou o timing de um divórcio político que já estava desenhado internamente na alta política alemã, e que foi acionado no momento tido como oportuno ou inevitável pelo chanceler socialdemocrata Olaf Scholz, depois de ser sistematicamente boicotado pelo então ministro das finanças Christian Lindner, chefe dos liberais. A ruptura da “coalisão semáforo” e os desafios da eleição do próximo domingo podem ser interpretados como eventos e padrões de uma crise política circundada e amplificada por outras crises, como a guerra na Ucrânia, a estagnação econômica, os problemas com o fluxo descontrolado de pessoas que pedem asilo no país, a reorganização geopolítica global e, não menos importante, uma crise da identidade nacional da Alemanha enquanto suporte europeu dos ditos “valores liberais e democráticos ocidentais” na aliança transatlântica com os EUA. Trata-se de uma policrise, uma crise multidimensional que envolve vários sistemas sociais de modo simultâneo e que corrói rapidamente uma série de certezas e pressupostos que orientaram a vida do povo alemão (e da sociedade mundial como um todo) por algumas décadas desde a reconstrução do país a partir do final da segunda guerra mundial. Não tenho a pretensão de analisar com profundidade esta situação complexa cheia de incertezas. Apenas desejo traçar as linhas gerais dos desafios que a política alemã não poderá evitar, sob pena de aprofundar ainda mais o processo de deslegitimação do status quo político e de fortalecer a direita radical, representada pelo partido Alternativa para a Alemanha (AfD). O conceito de policrise, como nos ensina Edgard Morin, descreve uma situação complexa de crises múltiplas, interconectadas e que tendem a se amplificar mutuamente. No entanto, como também nos ensina o sociólogo alemão Niklas Luhmann, embora as crises em sociedades hipercomplexas estejam interconectadas em sua emergência e amplificação, a sociedade não dispõe de um sistema central capaz de criar e coordenar com segurança as múltiplas soluções para os diferentes problemas. O dilema da política é que ela pretende ser este sistema coordenador central, sem nunca poder sê-lo como promete. Tentarei tratar da policrise a partir de seus significados especificamente políticos, e não econômicos ou climáticos. O fato da política não ser o centro absoluto da sociedade não significa que ela não consiga coordenar, em medida significativa e suficiente para resolver problemas importantes, o funcionamento da economia, do ensino e dos demais sistemas envolvidos na produção das policrises. Significa apenas que ela precisa contar com um grau igualmente significativo de imprevisibilidade e decepção em seus esforços, ou seja, que políticas públicas podem sempre falhar. A política consegue realizar uma coordenação “contextual”, no tempo e no espaço, dos demais sistemas sociais, mas pode perder esta capacidade em determinados contextos. O problema da política alemã é que ela tem falhado sistemática e continuamente em várias áreas. O longo governo de Angela Merkel não foi capaz de preparar o país para um futuro sem o estrondoso sucesso do modelo fordista de exportações que garantiu o bem-estar dos alemães por décadas a fio. A produtividade do trabalho estagnou e a inovação tecnológica também. O exemplo mais significativo é que hoje, até mesmo na Europa, os carros elétricos chineses deixam os carros alemães no chinelo. As consequências sociais desta decadência econômica são evidentes: retração drástica dos empregos industriais de qualidade, aumento da pobreza e da desigualdade econômica, aniquilamento das chances e perspectivas de ascensão social para as maiorias. É nesta situação de estagnação econômica, desintegração social e insegurança sobre o futuro que o tema da imigração ganha nova relevância política. Durante muito tempo, os partidos de esquerda negaram as consequências danosas dos fluxos descontrolados de refugiados entrando no país, quase sempre ocasionados por guerras criadas pelos EUA, e recentemente pela guerra da Rússia contra a Ucrânia. Mas estas consequências são visíveis nas escolas e nos bairros de todas as cidades que recebem grande fluxo de pessoas, embora sejam ignoradas pelos progressistas boêmios de Berlin e Hamburgo. Existem gerações de turcos com cidadania alemã incluídos de modo efetivo na economia e no sistema de ensino observando escolas e bairros sem capacidade de acolher mais gente. Muitos deles vão votar na direita radical na esperança de frear o fluxo. Não são apenas “alemães orientais”, acusados de baixa adesão aos “valores democráticos”, que estão preocupados com o descontrole dos fluxos de refugiados. A preocupação é geral e os políticos de esquerda e centro pelo menos decidiram priorizar o assunto. A guerra na Ucrânia é outra crise importante para a política alemã. Como as demais, ela não pode ser entendida isoladamente. Mas no seu caso, há a especificidade de que seus efeitos foram importados muito gentilmente pelo governo de Olaf Scholz, com apoio não apenas dos governistas verdes e liberais, mas também do principal partido de oposição, a União Democrática Cristã, líder das pesquisas para domingo, partido do provável novo chanceler Friedrich Merz. A Alemanha decidiu romper o comércio de gás com a Rússia e assim agravar a tendência de aumento da energia, afetando não só a vida das pessoas comuns, como também sua competitividade industrial. Seu volume de ajuda financeira à Ucrânia só é superado pelos EUA. E o apoio popular a esta política de guerra, que no começo era alto, caiu drasticamente, catapultando, junto com a estagnação econômica e a crise de controle dos fluxos de refugiados, a subida da AfD (direita radical) ao patamar de 20% dos votos. O partido, liderado por uma mulher homossexual com dois filhos adotados, está em segundo lugar nas intenções de voto; e até aqui a única fórmula para limitar seu poder é o chamado muro de contenção de incêndio: o acordo entre todos os partidos ditos “democráticos” de não fazer aliança, de não governar com a AfD, chamada por eles e pela imprensa erudita de “fascista”. Bonito, civilizado, diria a turminha do “amor vai vencer o ódio” ai no Brasil. Acontece que nesta “apoteose do amor”, como zombava Marx de seus amigos humanistas, o medo da guerra parece ser alimentado mais pelos antes pacifistas socialdemocratas e verdes do que pela AfD, que sempre defendeu a retomada do canal diplomático com a Rússia. Até o começo do ano, a direita radical alemã parecia estar isolada em sua posição pró-negociação com a Rússia. Todos os demais partidos, acreditando na duração eterna da “aliança transatlântica” com os EUA, acusavam a AfD de ser uma sucursal de Putin na Alemanha. Mas com a volta de Trump tudo mudou. Agora não só a negociação de paz entrou na pauta, como entrou para isolar politicamente e geopoliticamente seus antigos opositores na Alemanha e na Europa. No último domingo, o vice-presidente dos EUA, JD Vance, esteve na conferência de segurança de Munique para dizer que a Europa, e particularmente a Alemanha, e não a China ou a Rússia, é que ameaçam a democracia e a liberdade. A crença na perenidade da “aliança transatlântica de valores” como suporte de uma “ordem global baseada em regras”, na qual a Europa tinha sua posição de centralidade garantida pela aliança, foi frontalmente atacada pelo seu principal parceiro. Não bastasse, Vance ainda atacou o muro de contenção de incêndio contra a AfD, declarando que democracia tem a ver com vontade do povo manifesta nas urnas e que um partido relevante segundo as urnas não pode ser isolado. Na dimensão prática, as negociações sobre o fim da guerra na Ucrânia, iniciadas esta semana na Arábia Saudita com a exclusão sumária dos europeus enquanto interlocutores, assumem um formato no qual a crescente periferização geopolítica da Europa e da Alemanha estão claramente indicadas. O fim da era habermasiana e a política sem tutela Até a posse de Trump o status quo alemão ainda insistia em contar que os EUA estavam lá do outro lado para endossar a distinção entre amigos e inimigos da democracia, com a qual a imprensa e os partidos dominantes podiam garantir a exclusão de quem eles resolviam definir como antidemocráticos, com o apoio de um excêntrico tribunal de proteção constitucional com a incumbência de vetar partidos definidos como extremistas. Este consenso moral antiextremismo, envolvendo o establishment político, midiático, jurídico e até as humanidades, se constituiu a partir da derrota do nazismo e da conversão da Alemanha aos valores da democracia liberal ocidental como condição moral para sua reconstrução no âmbito da “aliança transatlântica”. Acontece que esta conversão tinha como pressuposto uma “América” que professasse os mesmos valores e que assim atuasse como um tutor legítimo do “aprendizado moral” alemão. Com a volta de Trump, a tutela americana ruiu e os alemães parecem despreparados para uma maioridade política sem a proteção da distinção moral e juridicamente ancorada entre “democráticos” e “antidemocráticos”. A Alemanha do pós-segunda guerra parece ter realizado o antigo sonho de sua velha burguesia cultural e acadêmica de uma política disciplinada, limitada e vigiada pelo direito e pelo consenso moral. Nesta “era habermasiana”, o teórico do consenso e da racionalidade comunicativa, a política deveria ser fortemente protegida de tendências “populistas” dispostas a trazer a vontade popular para o jogo sem antes passar pelos devidos filtros civilizatórios e comunicativos incumbidos de esfriar e desacelerar a relação entre maiorias sociais e governos. A combinação de parlamentarismo com estilo acadêmico, tutela jurídico-moral da vida partidária e consenso dos “democratas” em torno de muros de contenção dos “populistas” parece ter servido bem a esta política contida e protegida das emoções perigosas de segmentos populares tidos como pouco afeitos aos valores democráticos, como são considerados os próprios alemães dos estados que antes formavam a Alemanha Oriental pelos principais partidos, todos de raízes no lado ocidental. O problema é que este consenso “democrático” entre socialdemocratas, democratas-cristãos e verdes, ao excluir como “antidemocrático” um partido que já consegue ser maior que todos estes outros na parte oriental e em camadas sociais crescentes da parte ocidental, é percebido cada vez mais como uma violação arbitrária da própria democracia por esta parcela do eleitorado. O efeito Trump é aumentar a pressão e o calor contra este muro dos “democratas”, fazendo com o que a “era habermasina” do consenso ceda cada vez mais espaço para uma nova era de conflitos que a tutela moral e jurídica já não pode mais conter. É a política, estúpidos! A política com emoções perigosas, divisões sociais e culturais fortes, partidos velhos morrendo, partidos novos surgindo, e tudo isso sem tutela interna ou externa. Ao sistema político alemão só resta processar esta situação “caótica” para os padrões anteriores e tentar criar e oferecer novas alternativas para lidar com as múltiplas crises que afetam o país. Da perspectiva política a crise é tanto de “demanda” quanto de “oferta”, tanto de input como de output: os partidos e lideranças atuais não conseguem mais, como era o caso antes, obter o apoio de grandes maiorias que enxerguem nestes partidos e lideranças a representação de seus interesses e visões de mundo, e isto porque não conseguem também – inclusive a direita radical que se identifica pela alcunha de Alternativa para a Alemanha – ofertar programas distintos, com linhas de ação e políticas públicas capazes de se diferenciar nas eleições e nos governos e assim ganhar a confiança dos eleitores. Esta crise programática da política, cujo indicador mais seguro é esta crescente indiferenciação dos principais partidos, não é certamente um traço peculiar da Alemanha. Hoje ela está presente em quase todas as grandes democracias, em maior ou menor grau. No caso Alemanha, o agravante é que a crise programática envolve não só as múltiplas crises antes mencionadas, mas também o desafio inadiável de reconstruir sua identidade nacional depois do fim da “era habermasiana” do consenso, da política domesticada e da “aliança transatlântica” em torno dos valores liberais e democráticos. Para que o Estado alemão recupere sua capacidade de resolver problemas e enfrentar crises diversas é preciso que a nação alemã imagine e invente novamente o futuro, desta vez sem tutela, com os riscos e perigos da maioridade política e geopolítica, sem medo de expandir seus horizontes (e não suas fronteiras!), mesmo que tenha que combinar novamente com os russos.