Complexo de labrador
Ronaldo Junior 11/10/2025 17:01 - Atualizado em 11/10/2025 17:03
Imagem gerada por Inteligência Artificial.
É parte da minha rotina verificar se deixei espaço suficiente na porta entreaberta para garantir a passagem da pequena Jolie, uma Yorkshire de pouco mais de trinta centímetros – com peso pena de dois quilos e meio – que é a dona do quarto, quiçá da casa onde eu moro.
O vão da porta tem pouco mais de um palmo, largura suficiente para ela atravessar a abertura com sua corpulência de camundongo sem tocar os pelos na madeira da porta.
Ao contrário, ela tem a estranha certeza de que não consegue entrar. Já a observei deitada perto do alizar da porta aguardando alguém que lhe desse passagem, pois aquela não seria suficiente. Isso quando não resmunga para que alguém a perceba mais rápido.
É o estranho caso da cachorrinha que, de tão pequena a ponto de caber em qualquer lugar, se julga grande demais para os espaços que frequenta. Daí cunhei, obviamente baseado no termo rodrigueano, que ela possui o complexo de labrador, quase uma megalomania que a impede de seguir adiante, pois é grande demais para isso.
Por minha falta de noção espacial, compreendo e até me vejo na pequena dona do meu lar, mas não posso deixar de correlacionar esse complexo com a vida real.
Há quem se julgue bom demais para competir com alguém; há quem se pense autossuficiente a ponto de cavar um fosso ao redor de si; há quem se ache gramático a ponto de dizer que “fulano escreve errado”, mas segue usando vírgula entre o sujeito e o verbo; há quem se sinta intocável porque tem proximidade com alguém que ocupa momentaneamente o poder; há quem se rotule dono do mundo inteiro por ter sido eleito para governar um país.
Você pode observar uma aparente contradição nesta teoria furada pelo fato de os labradores serem reconhecidos por sua docilidade e por seu companheirismo quando se relacionam com os humanos. Mas não se engane: o termo utilizado tem a ver com a corpulência típica da raça e com o fato de, diferentemente dos chamados vira-latas (cães sem raça definida), terem uma linhagem que lhes atribui alguma superioridade – pelo menos aos olhos dos humanos.
Sensato ou não, o Complexo de Vira-latas (cunhado pelo Profeta Tricolor em 1958) e o Complexo de Labrador são definidos pelo enorme vão entre quem sou e quem penso que sou, sobretudo em relação ao outro. E isso é uma construção cultural – quando se fala de nacionalismo – ou mesmo subjetiva – quando se trata de autoestima –, sendo ambas entrecruzadas na biografia do indivíduo.
No fim das contas, pendula entre a humildade e a megalomania o bom senso que cada um julga ter. Eu, por exemplo, escrevo achando que sou lido. Não venha me julgar – caso me esteja lendo –, pois tenho o direito de alimentar minhas próprias utopias.
Agora, terei que repousar a caneta. Tem uma microlabradora na porta querendo entrar.
 
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve mensalmente no blog Extravio.

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.