A lógica da insatisfação
Ronaldo Junior
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Quando terminei a leitura de Em agosto nos vemos, romance póstumo de Gabriel García Márquez, sabia que não estava diante do paradoxo moral de uma mulher que busca casos extraconjugais por mera curiosidade. Na verdade, Gabo utiliza os relacionamentos para falar do vazio e da incompletude típicos do nosso tempo.

Ana Magdalena Bach, mesmo vivendo em uma família relativamente estável, num casamento de cerca de duas décadas, com filhos encaminhados, se descobre na curiosidade de viver casos amorosos em viagens anuais no mês de agosto - quando visita o túmulo de sua mãe, que fora enterrada em uma ilha.

Sem considerar a história em seu sentido literal, penso no quanto a trama revela de uma humanidade hedonista pautada na descartabilidade das relações e na satisfação momentânea como motor das escolhas.

Entendo a família como a segurança do que a personagem conquistou ao longo da vida, a mãe falecida como um pretexto para se ausentar desse núcleo familiar marcado pela rotina e os casos extraconjugais como uma satisfação oculta que permite fugir da mesmice e garantir o viço da novidade.

Você pode preferir ver pela ótica do julgamento moral acerca da traição dentro do relacionamento, mas eu vejo essa obra como uma análise da necessidade de autodescoberta motivada pela insatisfação, pelo tédio ou pela mesmice. Ana não se entende por completo enquanto não percebe que pode ir além de seu casamento e de sua família.

E essa insatisfação - até então não percebida - a fazia infeliz. Muitas pessoas são capazes de se dizerem felizes dentro de uma rotina, ocupadas com as minúcias que compõem as agendas cheias - dentro e fora de casa -, mas Ana não era uma dessas pessoas, ou pelo menos passou a não ser ao longo da vida.

Ao nos apresentar uma personagem mais madura, Gabo dá a dimensão da passagem do tempo ao inseri-la numa lógica que me parece fazer muito mais sentido para as gerações mais recentes: a lógica de estar constantemente insatisfeito.

Sei que essa angústia é própria do ser humano e, mais ainda, motivadora de quase tudo que fazemos e queremos - o capitalismo sabe manejá-la muito bem, inclusive. Mas é inegável que o século XXI tem uma insatisfação vazia como sua marca registrada.

Nos nossos dias, muito disso se deve, é claro, às redes sociais, que são veículos de depressão em massa, com o bombardeio de informações que faz o indivíduo se sentir em constante comparação com o outro, que está sempre feliz, sadio e tem uma história para contar todos os dias.

Mas muito disso se deve, também, à forma como lidamos com o que está ao nosso redor. A insatisfação tem a ver com o quão descartáveis e voláteis estão as coisas. Algo nos diz que o novo é melhor e que precisa ser conquistado. De fato, a novidade é inevitável e, por vezes, até desejada, mas qual valor damos para o agora quando estamos sempre com a cabeça no amanhã?

Com a precisão de suas palavras e com a beleza de sua narrativa, Gabo esmiúça as emoções de uma personagem que se descobre enredada nas artimanhas do destino traçado por sua mãe - ou que pelo menos usa isso como pretexto para sua autodescoberta sentimental.

*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve mensalmente no blog Extravio.

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    Sobre o autor

    Ronaldo Junior

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.