A romantização do papel
Ronaldo Junior
Fonte: Pixabay
É fato que sempre está em curso uma mudança na forma como lidamos com as informações. O livro, por exemplo, ganha novos suportes, formatos e maneiras de ler ao gosto de quem aprecia.
 
Como cantava Belchior,
 
 
E eu ousaria mudar o verso: “uma nova mudança já está a acontecer”. Pois a vida é isso, mudança em curso, e sempre tem quem torça o nariz porque bom mesmo era no meu tempo – eu sei, ainda vou falar essa frase daqui a alguns anos, é questão de tempo.
 
Parte dessa mudança ressalta em mim e em muitas outras pessoas o apego pelo livro impresso – seu projeto gráfico, seu cheiro, suas fragilidades e suas cores -, e eu admito que até cheguei a relutar antes de comprar um Kindle por achar que não me adaptaria.
 
A relutância ficou para trás nos primeiros dias, e hoje eu já quase não consigo ler sem acompanhar o andamento da leitura em porcentagem – teria até que me reacostumar para voltar ao método de contagem por páginas.
 
Com o passar do tempo, percebo que o problema não está na mudança do suporte ou mesmo do hábito, mas no tratamento que damos a essas transformações. O uso exagerado das tecnologias cria problemas, mas a absoluta relutância em aceitá-las gera uma espécie de anacronismo utópico.
 
Há quem diga que não larga os papéis porque o contato com a folha tem um apelo sinestésico que, na verdade, pode estar ocultando uma compulsão por acumular papel impresso – observe se não é o seu caso e procure um especialista.
 
Não nego que também sou desses que fica romantizando a relação com livros impressos, já que tenho minha coleção e sempre gostei, desde criança, de jornais, revistas e livros. Mas chega um momento em que você percebe que o espaço físico da sua casa é limitado para comportar mais exemplares e você pensa em alternativas para isso, afinal, nem todo mundo tem uma biblioteca como a do Umberto Eco – exceto no Kindle.
 
Então criei o hábito de ler numa tela, o que progrediu para o hábito de escrever em telas – como agora mesmo estou fazendo – e provavelmente evoluirei para a quase absoluta abolição do papel na minha rotina.
 
Isso alcançou, é claro, meus hábitos de estudante e, em minha segunda graduação, já quase não levo mais papéis na mochila – apesar de ainda andar com canetas para papéis que possam repentinamente aparecer solicitando grafia -, o que não deve ser entendido como desinteresse, ao contrário: faço anotações em (quase) todas as aulas por meio digital, o que desperta a rabugice de professores que cismam em não aceitar que o mundo está mudando, e a sala de aula está indo junto.
 
Chego a ouvir piadocas dos que julgam a ausência de papel nos meus materiais como algo de desdém na minha postura discente. Eu, porém, vejo no pretenso conservadorismo desses professores-juízes algo de antiquado que me lembra Monteiro Lobato escrevendo sobre o Modernismo.
 
Isso porque, não sendo por limitação material que impeça o acesso a equipamentos e à internet, beira a insensatez ser analógico nos dias atuais, uma vez que materiais e métodos avaliativos podem ser veiculados com muito mais facilidade no meio digital. Vejo, portanto, certa hipocrisia na relutância dos profissionais que negam o tecnológico em face da vazia didática sensorial do papel impresso.
 
Não estou aqui pregando que livros e materiais didáticos impressos sejam incinerados – até porque, além de ser um amante dos livros físicos, acho uma balela essa história de que a internet vai matar o livro, uma vez que a única ocorrência será a mudança de suporte, que já está acontecendo.
 
Na contramão dos sommeliers de celulose, continuo apreciando livros e textos – sejam digitais ou impressos -, mas menosprezando em absoluto a postura de quem se reivindica dono dos hábitos puros da humanidade.
 
Sinto nessas pessoas notas de um tradicionalismo amarelo-desbotado, mas há algo que me faz questionar: até hoje, nenhum desses professores analógicos me solicitou o envio de cartas como forma de entrar em contato ou enviar trabalhos, pois – pasme – todos têm e-mail e Whatsapp.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.