Descaminho
Ronaldo Junior 22/01/2022 13:40 - Atualizado em 28/01/2022 17:33
Centro de Campos dos Goytacazes, foto de 2018.
Centro de Campos dos Goytacazes, foto de 2018. / Ronaldo Junior
Não havendo paralelismo que encontrasse, ele firmava suas posições no cruzamento de realidades, na predisposição a incertezas e na crueza repentina das relações espontâneas.

Suas saídas cotidianas e intempestivas faziam de seu silêncio um esclarecimento sobre a personalidade abrupta que o dominava: buscava capturar momentos com a câmera de seu celular a fim de desenredar o que havia por trás dos transeuntes que faziam as horas úteis do Calçadão em seu ir e vir.

A mulher cheia de sacolas carregava o filho, aos tropeções, pelo braço. O vendedor gritava suas ofertas ao vento enquanto passava com seu passo pesado. O engravatado, cara amarrada, caminhava relutante sob o sol. O casal carregava, um de cada lado, a TV de 55 polegadas. A mulher, saltos ritmados na pedra portuguesa, caminhava lentamente até o banco.

Tudo acontecia na simultaneidade das pressas guiadas pelo compasso cronológico que dissipava todo o movimento tão logo o sol se pusesse. E ele permanecia sentado no banco fingindo digitar em seu telefone enquanto fotografava os passantes. Uma vez, quase tivera sua atuação descoberta quando um homem de meia idade – frequentador habitual da área – perguntara, do nada, o que ele fazia com a câmera aberta.

Mas uma desculpa qualquer bastara, sem maiores repercussões.

Chegava em casa após um dia inteiro de fotos de pessoas aleatórias para abrir uma a uma na tela do computador e criar narrativas – factuais? – sobre a vida das pessoas que por ele passaram ao longo do dia.

Preenchia sua realidade com ficções alheias, pois, saindo de si, era muitos. Não tinha nome que limitasse suas possibilidades, preenchendo-se dos que por ele passavam ao longo de tardes inteiras cercado por ruídos e cheiros e acontecimentos repentinos que tomavam sua atenção no relance do centro da cidade.

Em seu solitário perfil na rede social, alimentava-se de postar algumas das fotos com legendas que recriavam o inimaginável: mazelas, desejos, histórias pregressas e até genealogias epopeicas eram atributos dos personagens desconhecidos percorridos por sua aflição de viver vidas outras.

Flâneur da virtualidade, deixava-se vagar por outras vivências no passatempo de extraviar a sua própria pelos caminhos. Na multidão digital, encontrava sua extensão a perscrutar certezas pendulares na recusa plena de estar só.

De nada adiantava segui-lo. Seus rastros eram insuficientes para guiar um mero curioso pelo labirinto de seus pensamentos, pois cada elemento de sua personalidade fora esquartejado e espalhado categoricamente pelos cantos da cidade, na sola dos sapatos e na atenção dispersa dos passantes que não o percebem.

*Ronaldo Junior tem 25 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.