Arthur Soffiati - Uma outra história
*Arthur Soffiati - Atualizado em 27/12/2025 08:44
A natureza sempre foi ativa antes e durante a presença da humanidade. Ela tem uma história própria. Em sua relação com os grupos humanos, a natureza atua como sujeito de história. Existem casos em que grupos humanos ultrapassaram os limites da natureza e sofreram reveses, como no vale do Indo, no Sudeste Asiático e na Península de Iucatã.

Nenhuma sociedade, contudo, explorou mais a natureza do que a ocidental. De tal modo se intensificou essa exploração que, a partir de 1970, começou-se a perceber uma crise ambiental diferente das anteriores por ser produzida pela economia ocidental e ocidentalizada e por sua amplitude global.

Alguns historiadores perceberam, então, que um novo campo de investigação se constituía: o das relações das sociedades humanas com a natureza. Por muito tempo considerada objeto a ser explorado, a natureza passa a ser sujeito de história. Pode-se arguir que a natureza não pensa, como qualquer ser humano. Portanto, não pode ser sujeito de história. Sabemos que um humano recém-nascido não pensa, mas existe uma história da infância. Assim, a condição de sujeito de história e de direito não requer a condição de pensamento, reflexão e razão.

Ao passar da condição de objeto para sujeito no século XX, a natureza deixa também de ser objeto no passado. Em lugar de se restringir a história humana às relações entre humanos, passamos a estudar as relações entre grupos humanos e natureza não-humana. O historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie estudou as relações entre mudanças climáticas e humanidade em exemplar livro. Ao dizer que recorria a documentos produzidos por humanos, entre outros, para registrar as mudanças climáticas, ele chocou historiadores convencionais.

Alfred W. Crosby escreveu “Imperialismo ecológico”, demonstrando o impacto causado pela introdução de plantas e animais transportados pelos europeus nos diversos continentes não-europeus. Warren Dean estudou os impactos causados pela destruição da Mata Atlântica. Existem muitos estudos mais nessa linha de investigação.

Mesmo assim, a condição de sujeito da natureza tem sido negada ou ignorada por historiadores que continuam se dedicando à história regional e nacional. Não se trata de reivindicar que todo historiador se dedique à história ambiental, mas de pedir que a história tradicional, mesmo com as linhas atuais de investigação, considere a natureza como sujeito. De fato, quando se dimensionam as diversas sociedades regionais e nacionais no âmbito da natureza, a concepção se transforma. Citemos os casos da colonização do Brasil com a derrubada de matas, com a exploração do ouro, com as monoculturas da cana e do café. A destruição da natureza afetou escravizados africanos e pobres brancos.

Dentre outros temas, tenho me dedicado a estudar as relações de grupos humanos com o ecossistema manguezal. Até o fim do século XX, os biólogos dedicavam-se ao estudo do manguezal em seu aspecto biológico. Alguns cientistas sociais (muito poucos) estudavam a vida de coletores e pescadores que vivem desse ecossistema. Atualmente, os estudos pululam nas esferas biológica e social, mas ainda não existe o diálogo necessário entre elas. Assim, com relação a todos os biomas do planeta Terra.

O estudo da natureza como sujeito de história implica no estudo do processo de globalização, ou seja, de ocidentalização do mundo a partir do século XV. Foi esse processo que provocou a crise ambiental da atualidade. Um grande historiador da globalização é Charles Boxer, que divisava o mundo não a partir de regiões e países, mas do processo de expansão da Europa. Serge Gruzinski é o grande historiador da globalização da atualidade. Mas ele não ultrapassa os limites do humano em seus estudos.

O historiador indiano Dipesh Chakrabarty dá um passo adiante da história da globalização ao reconhecer que a humanidade transpôs o global e entrou numa era planetária. Não apenas conquistamos, colonizamos e exploramos povos e culturas não-ocidentais. Conquistamos e exploramos os diversos ecossistemas, as espécies animais, as fontes fósseis de energia. Provocamos processos de destruição de solos e águas, de biodiversidade e de relações tradicionais entre sociedades e natureza. Poluímos o espaço extraterrestre com geringonças. Acime de tudo, estamos causando mudanças climáticas.

O historiador ambiental pode muito bem adotar a cômoda postura de pesquisar em gabinete, examinando documentos escritos, mapas, desenhos, fotografias, objetos etc. Mas cumpre observar que a natureza é também uma grande fonte de documentos. Há historiadores que fazem questão de ir a campo para compulsar os documentos que a natureza produz, como solos erodidos, avanço do mar, salinização, herbivoria e processos anômalos. Contudo, este pesquisador necessita aprender com outros campos de estudo. Não falo pelos historiadores, mas examino o regional pelo global e pelo planetário. Portanto, considero-me um historiador ambiental regional que vê no território estudado o global e o planetário.

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