Arthur Soffiati - Affonso Romano de Sant’Anna
* Arthur Soffiati 08/03/2025 08:46 - Atualizado em 08/03/2025 08:49
Arthur Soffiati
Arthur Soffiati / Divulgação

Atravessei os anos da década de 1990 envolvido com pós-graduação em história, mas não abandonei de todo meu interesse pela literatura. Passei a ler menos, mas não deixei a leitura de todo. Ao se aproximar o ano de 1993, comecei a preparar um artigo sobre os centenários de nascimento de Mário de Andrade e Gilka Machado. Na biblioteca de Mário, encontrei o primeiro livro de Gilka: “Cristais partidos”, lançado
em 1915. As notas marginais revelam apreciação severa e preconceituosa de Mário. Além de criticar a poesia simbolista da poeta, ele também censurou sua sensualidade. De fato, Gilka estava de acordo com a forma de escrever poesia de seu tempo, mas não hesitava em externar seu erotismo. Não pegava bem para uma mulher casada mãe de dois filhos.

Localizei o endereço de Eros Volúsia Machado, sua filha, e lhe telefonei marcando um encontro. Bom tempo aquele em que havia catálogo telefônico e em que um estranho era recebido em casa para conversar. Eros foi considerada a criadora da dança brasileira erudita pelo próprio Mário, que, mais tarde, reconheceu as qualidades de Gilka. Eros Volúsia me recebeu com gentileza, mas em nada me pôde ajudar. Encontrei, então, o livro “A fala-a-menos - a repressão do desejo na poesia feminina”,
de Sylvia Paixão, que trata do caso de Gilka. Além de o ler, procurei um contato pessoal com a autora. Consegui. Na conversa, acabamos por descobrir que somos primos em terceiro grau.

Foi Sylvia que me apresentou a Affonso Romano de Sant’Anna. Ele, então, era o diretor da Biblioteca Nacional. Não lembro se foi professor de Sylvia ou a orientou na pós-graduação. Tínhamos, então, dois artigos. Eles foram publicados em “Poesia sempre”, revista da Fundação Biblioteca Nacional, em junho de 1993, no segundo número do periódico.

Affonso nos recebeu em seu gabinete. Era natural a intimidade que tinha com Sylvia em razão de contatos anteriores. Mas eu era um estranho. Para o poeta e cronista, parecia que não existiam estranhos. Ele me tratou como se me conhecesse de longa data. Disse-lhe que eu morava em Campos e ele me respondeu que já estivera na cidade fazendo palestras, conhecendo escritores daqui. “Seu
temperamento é afável”, comentei com Sylvia. Ela confirmou.

Eu frequentava a Biblioteca Nacional pelo menos uma vez por semana a fim de pesquisar para minha dissertação. Numa das vezes, encontrei com Affonso à espera do elevador. Havia se passado algum tempo desde nosso encontro. Fiquei no meu canto. Foi ele que se dirigiu a mim chamando-me pelo nome. Sorriso largo e simpático. De fato, era uma pessoa simples e cortês. Além da extraordinária memória.

O tempo passou. Ele deixou a direção da Biblioteca Nacional em 1996.Acabamos por nos encontrar mais uma vez em Campos, onde ele veio fazer palestra. Mais uma vez, lembrou-se de mim e do meu nome. Trocamos e-mails. Ele e eu éramos, então, egressos dos tempos analógicos. Escrevíamos cartas com lápis, caneta ou máquina de datilografar. O primeiro momento da internet não me causou
muita estranheza, pois passei a escrever as cartas de antes em meio eletrônico. Eu podia redigir textos longos. A primeira carta que enviei a Affonso data de dezembro de 1999. Ele a respondeu no início de 2000. De certa forma, eu procedia como contou Otto Lara Rezende sobre a atitude dos jovens mineiros com relação a Mário de Andrade: enviar seus primeiros poemas e contos ou mesmo um simples bilhete para receber resposta do escritor paulista.

Creio que, como Mário, Affonso não deixava correspondência sem resposta. Mas sem o caráter doutoral de Mário. Ele respondia de forma gentil, mas com poucas linhas. Numa das minhas cartas, comentei crônica dele sobre “A montanha mágica”, um dos grandes romances de Thomas Mann e da literatura ocidental. Encontrei uma afinidade que me pareceu oportuna para comentar outros livros do escritor alemão. Mas, como falam por aqui, pato novo não dá mergulho fundo. Falei-lhe, numa das cartas sobre a solidão do intelectual de província, lembrando que todos os grandes escritores regionais só se tornaram conhecidos nos grandes centros, como José Cândido de Carvalho e Thiers Martins Moreira.

Ele me respondeu que também sentia esse tipo de solidão, só que em relação a Paris. Além de conhecer bem os autores campistas que saíram de sua terra, ele lembrou Ewelson Soares Pinto, de Itaperuna. Campos preparava, então, sua primeira Bienal. Lenilson Chaves a idealizou e a realizou. Affonso foi convidado. Propus-lhe abordar a questão ambiental na literatura. Ele recusou por já ter preparado a sua fala. Sem recurso às cartas, eu não lembraria de detalhes.

Também lhe falei do meu medo de envelhecer e de morrer. Sua resposta foi lacônica: “isso é inevitável”. De fato, é inevitável. Guardo as seis laudas da nossa correspondência. Ao relê-la, percebi a nítida intenção de me exibir.

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