Maestro Ethmar Filho
25/01/2025 14:29 - Atualizado em 31/01/2025 14:29
Maestro Ethmar Filhor
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Reprodução/Facebook
Marcus Vinícius de Moraes encontrou-se com o Maestro Tom Jobim, apresentado por um amigo, para comporem juntos o musical “Orfeu da Conceição” e para fundarem, junto com João Gilberto e outros craques, o movimento musical mais expressivo da música popular brasileira de todos os tempos. Tom transferiu para suas construções harmônicas e melódicas uma profunda relação com a tristeza e com o romantismo, ocasionada pelo ressentimento contido de ter perdido o pai precocemente.
João Gilberto, depois de muitas tentativas musicais mal sucedidas voltou derrotado para a Bahia, de onde retornaria alguns anos depois para “colocar o ovo em pé”, através da batida do violão que daria sentido à Bossa Nova e para gravar com Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Elizete Cardoso o Disco do musical “Canção do Amor Demais”.
A Bossa Nova, certamente, não teria existido se o relacionamento artístico desses três personagens não tivesse caminhado nessa estrada em que caminhou e se, cada um, individualmente, não tivesse dobrado cada esquina que dobrou.
A Bossa apresentava uma leveza em suas letras, que os jovens brasileiros precisavam, depois de anos de samba-canção e boleros tristes, traduzidos do Espanhol, tais como: "Estou perdido / Ele não me ama / Ele nunca me disse / E agora estou sozinho no mundo." Um dos maiores sucessos de 1952 foi "Ninguém me ama" do jornalista notívago Antônio Maria: “Ninguém me ama / Ninguém me quer / Ninguém me chama / De meu amor. E assim por diante. Era uma coisa muito melancólica! O novo conceito, trazido pela Bossa Nova, de “O Amor, O Sorriso e A Flor” caiu como uma brisa fresca do mar, naquela juventude. Porém, já nos anos sessenta, quando a Bossa começa a ganhar o mundo, algumas músicas faziam tanto sucesso que necessitavam de versões, para que a indústria fonográfica pudesse coloca-las nas vozes de outros cantores que faziam sucesso em seus países.
A primeira dessas versões seria gravada nos Estados Unidos, com João Gilberto, o saxofonista norte americano Stan Getz, Astrud Gilberto, mulher do João, que estava casualmente no estúdio acompanhando o marido, o autor Tom Jobim, os músicos e o produtor Creed Taylor. Na sessão original de gravação do disco que se chamaria “Getz / Gilberto”, João Gilberto ambientou Stan Getz na elasticidade lírica da Bossa Nova, uma vez que o Stan já apresentava uma certa “bossa” em seu instrumento. A esposa de João, Astrud Gilberto, também cantou. A versão original de "The Girl From Ipanema" apresentava ambas as vozes, a voz do João e a voz da Astrud, mas os editores do projeto, visionariamente, eliminaram a parte do João, tornando a música mais curta (mais comercial e mais fácil de ser absorvida pelas rádios), lançando a pequena voz de Astrud Gilberto para milhões no mundo inteiro. O LP “Getz / Gilberto” foi lançado logo depois e continua sendo o maior registro de Bossa Nova na história norte-americana e mundial.
Enquanto a classe média, consumidora e admiradora da “Bossa” ganhava o litoral do Rio, a especulação imobiliária empurrava as classes menos favorecidas morro acima. A topografia do Rio de Janeiro facilitou a acomodação destas classes nos morros da Tijuca, Copacabana, Botafogo e Centro (até então bairros nobres da cidade), sem que, a exemplo de outras topografias, tivessem que se mudar para as periferias. O chamado samba autêntico, das populações pobres, se já não estava, mudou-se, então, definitivamente para o morro. Muitos artistas da “Bossa” reconheceram a importância e a qualidade desse veio, pesquisando, estabelecendo intercâmbio com sambistas e atravessando fronteiras, denominadas “margens semiosféricas”, um conceito de Yuri Lotman para definir divisas de diferentes, mas complementares universos semióticos. Nara Leão, apelidada de “a musa da Bossa Nova”, trouxe para o movimento e para as gravadoras da época sambistas autênticos como Cartola, Zé Kéti e Geraldo Pereira.
Um dos mais expressivos resultados destas rupturas, de que falamos anteriormente, é a construção de uma terceira margem semiosférica. Nem o asfalto nem o morro, mas um resultado desta dialética e destes intercâmbios, como ingrediente fundamental na formação de uma nova música.
A arte musical é icônica. É um discurso letrístico, harmônico e melódico cuja significação resultante não necessita da realidade. O artista constrói ícones; na arte o ser humano cria. A arte constrói universos exequíveis. O jogo da arte é a construção de possibilidades. O ícone é possibilidade. A música é aberta, faz uso da liberdade, para descrever situações existentes ou fictícias. A música possui várias possibilidades, vivendo sempre de renovação, novos arranjos, novas versões e contextos. Os objetos do mundo se expressam de diversas maneiras. O ícone é um signo que se assemelha formalmente ao objeto. O ícone ao se constituir acaba constituindo o próprio objeto. O fundamento da arte é a liberdade; o signo da arte, da música na Bossa Nova, determina a forma do objeto, cosmopolita e distinto, embora habitando a mesma semiosfera.
A música de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, semióticamente, traz em sua poesia uma evocação ao que o pessoal da BN chamou de “beber na fonte”.
Esta citação metafórica que, em se tratando de alusão à arte, chamaremos de licença poética, traz um significado tão fantástico como “Água de Beber” e “...coqueiro que dá coco...”. Como nos exemplos citados, veste-se de redundância na forma, mas de verdadeira concepção histórica no conteúdo. “Beber na fonte” significa pesquisar o samba onde o samba nasce.
Maestro Ethmar Filho – Mestre e Doutorando em Cognição e Linguagem pela UENF, regente de corais e de orquestras sinfônicas há 25 anos.