Banco da Rodoviária
candida 08/02/2010 20:05
Banco da Rodoviária        Cândida Albernaz  Na casa a beira da estrada, os tijolos aparecem sem qualquer pintura ou acabamento. A varanda em tom lilás sobressai com uma porta larga de madeira trabalhada em relevos. Herança da patroa que não a queria mais. Ela mesma passara a mão de tinta, o que tornava onde morava um lugar diferente do resto da vizinhança.  Sempre fora assim, se queria algo, ela mesma fazia. Ainda criança sua mãe saiu de casa levando o irmão caçula. Ela ficou com o pai. Tinha oito anos, e já era uma mocinha, como a mãe cansava de afirmar enquanto arrumava as coisas. O pai não podia ficar sozinho e precisava de alguém que cuidasse dele. Chorava ouvindo a mãe falar, e lembrava-se de como agarrara na barra do vestido vermelho com flores brancas que usava, puxando-a para trás. Não adiantou. A mãe arrastava a perna e ela junto. Quando chegaram à porta, ela retirou sua mão com força e disse que na semana seguinte viria vê-la. Não voltou até hoje. A porta daquela época também não é mais a mesma.  A vida ao lado do pai não foi das mais fáceis. Crescia e os cabelos crespos e pretos, os olhos puxados e a boca estreita, lembravam cada vez mais sua mãe. E quando queria ofendê-la, falava dessa semelhança com “aquela vagabunda da sua mãe que largou você atrás de um qualquer. A gente logo vê que é filha daquelazinha”.  Cuidou do pai, das bebedeiras dele, das mulheres que trazia para dentro de casa e que por muitas vezes quiseram ser sua mãe. Demonstravam isso batendo nela, porque precisava ser educada por alguém.  Há poucos dias recebeu uma carta. Quando viu o remetente, pensou em queimar. Haviam se passado trinta anos. No inicio chorou muito, costumava rezar pedindo que mãe fosse buscá-la. Após alguns anos começou a sentir raiva e pedia sua morte. Com mais idade, convenceu-se de que ela havia morrido e por isso nunca mais voltou. Portanto ela só não procurava a filha, porque morta, não podia.  Guardou a carta na gaveta da cômoda e agora resolveu abri-la: “Filha, talvez não pense mais em mim, mas não há um dia que deixe de lembrar seu rostinho. Tentei procurá-la outras vezes, mas como morava longe e não sabia escrever direito, desisti. Mudamos para perto. Tenho certeza de que seu pai cuidou bem de você, sempre foi a preferida dele. Seu irmão cresceu forte e hoje está casado e com dois filhos. Meu neto me ajudou a escrever essa carta. Chego na sua cidade em cinco de outubro. Queria ver você. Longe de seu pai, que sei ainda está vivo. Ficarei na rodoviária esperando o dia inteiro. O último ônibus sai às dezoito horas. Estarei no banco do lado direito do terminal. Espero que ainda haja esse banco. Estou velha e cansada. De sua mãe que apesar de ser diferente das outras a ama,beijo.”  Dia cinco de outubro é hoje. Duas horas da tarde. Ela deve estar lá, sentada esperando.  Não iria. Para quê? Nem se lembrava de seu rosto. O que também já deve ter mudado muito. A mãe não teria como reconhecê-la. Era uma menina quando a deixou. Às cinco horas resolveu que caminharia até lá. Ficaria de longe observando.  *                                          *                                           *  A rodoviária estava cheia. Olhou os bancos e havia várias senhoras e crianças sentadas neles. Procurou o da direita. Uma mulher com ar cansado suava passando a mão nos cabelos enquanto conversava com uma criança. A outra, quieta parecia não ouvir o alvoroço a sua volta. Usava um vestido vermelho com flores brancas que parecia estar apertado demais. Olhava o chão e de vez em quando levantava a cabeça procurando alguém.  Ficou observando-a tentando enxergar a semelhança que seu pai via nas duas. Não encontrou. Aquela mulher tinha olhos apagados, a pele enrugada e os cabelos brancos. Notou que sua mão tremia ao olhar o relógio. Demonstrava ansiedade. O ônibus chegou e sairia em dez minutos.  Andou até próximo ao banco e parou. Tentou disfarçar olhando para outros lugares. Ainda não decidira se queria falar com ela. Talvez numa outra ocasião. Tinha o endereço na carta. Quem sabe a procuraria depois.  As pessoas formavam fila para entrar no ônibus. Procuro-a novamente e não a viu. Será que ela entrou enquanto olhava em volta?  A mão em seu ombro fez com que sentisse um sobressalto “não deixaria nunca de reconhecer seus olhos. Você mudou, mas eles continuam com a mesma expressão do dia em que fui”. Olhou aquela senhora e não sabia dizer o que sentia. “Não fale nada agora, minha filha. O ônibus vai sair. Volto amanhã e espero por você no mesmo banco em que estava hoje”.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".

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