Ronaldo Junior - Prosas urbanas
Ronaldo Junior - Atualizado em 20/12/2021 18:00
Vidreiro
A translucidez da vida me atrai.
Os olhos são cristais que, em inequívoca abstração, encontram aquilo que são capazes de sentir e absorvem paulatinamente cada inspiração, cada passo, cada ruído, cada odor.
Perceba o som que vem da rua guardada pela janela. O vidro não passa de um talvez que corta minha personalidade ao meio e estilhaça quem penso ser. Sou capaz de tocar cada sensação por trás de sua espessura límpida, janélica.
A janela é um quadro vivo — touch screen — por meio do qual alcanço as memórias e significados de universos inteiros, interiores, despidos no movimentado exterior das ruas movidas pelos ponteiros do relógio.
A cidade é mera pincelada sob meus olhos, ao passo que os seres seguem seus rumos por onde não consigo ver, cada qual com seu tempo, cada tempo com suas desigualdades.
Há muitas disparidades entre os calçados e as calçadas. Talvez você não consiga ver, mas sua janela dialoga diuturnamente com a alma humana, criando personagens e desfazendo olhares em reles conformidades empoeiradas. Observar o homem a fazer rotina em seu calendário é algo que me comove.
A imperfeição com que existimos me atrai.
O agora passa pelo vidro com a velocidade de uma descarga elétrica, e eu permaneço intacto a ob(ser)var a humanidade com a ambição de encontrar quem eu mesmo sou. Talvez um relance, um olhar, um disfarce, um transe. O sentimento de pertencer a um mundo sem que o mundo saiba o que é você.
Um pouco acima do chão, vejo o vento surgir do andar apressado que move cada pé em par. As folhas, os lixos, as cores, os cheiros e os podres vão seguindo o fluxo do trânsito intenso a andar pelas calçadas que fico a observar.
Não é à toa que a calçada, em boa parte de sua extensão, é feita grisalha — deve ser para sobressaírem as ilusões. O que me ressalta os olhos é o tutano das coisas. Fotografo cada instante — flâneur — com os olhos fumegantes de quem espia a humanidade e a sente pulsar pelo simples toque dos sentidos a passar. Uma história se conta em minha consciência, remontando cada trajeto que levou aquele ser até ali.
Com a veracidade de uma lenda, garanto a mim que alguns nem mesmo possuem consciência do motivo pelo qual se guiam em determinada direção. Ato mecânico, andam por farejar sobrevivência ou interesse; vão ao trabalho e à escola por simples coação da rotina; beijam-se e se abraçam por mera convenção social; são o que são porque lhes foi imposto ser alguma coisa.
Por trás da desumanização, há um universo inexplorado que meus olhos estão dispostos a enxergar. Eis o engendramento de minha própria humanidade.
A latência das humanidades me atrai.
No homem, uma multidão
Ocioso, andava eu pelas esquecidas trilhas de concreto que abrasavam o centro da cidade, havia um quê de desolação nos olhos de cada indivíduo passante a cruzar e a esbarrar comigo no mormaço sem vida das calçadas.
Eu era silêncio a demorar os olhos na multidão inquieta com o fascínio de quem se depara com uma atmosfera deliciosamente inédita. Um burburinho me consumia os ouvidos, e eu permanecia no encalço da minha própria sombra, utilizando meus passos para saciar meus tédios.
Me agrada olhar a feição dos transeuntes disfarçadamente. Trata-se de uma observação de canto de olho que tenta supor emoções ocultas, desvendar destinos traçados, conjecturar intenções impensadas, sondar motivos reprimidos, imaginar ficções inexplicáveis, tudo pela arte de compreender o homem enquanto existência repleta de profundidades imensuráveis.
Decerto, meus olhos são enganosos e minha mente inventa até o que não cria, mas eu insisto em sentir a vibração das vidas.
O céu, em grisalhas massas de chuva delineadas, pintava a noite naquela tarde de fim de verão. Enquanto isso, passavam por mim pessoas de várias idades, mal arrumadas ou engravatadas, mendigas ou milionárias, cada qual percorrendo as ruas com sua pressa, cada uma remoendo em silêncio os compromissos assumidos, as dívidas em aberto, os horários marcados, o incessante toque do celular, a fome que chega no meio da tarde, as vontades reprimidas, o receio de sofrer qualquer violência no meio da rua, a ânsia por se desfazer em cansaço sobre a própria cama.
A rua tinha suas próprias convicções, memórias, significados, emoções. Por isso, o caminho por onde passamos absorve sempre um fragmento de nossas ilusões, o qual agrega à alma da rua uma direção para os meandros de nossa própria humanidade, multidões internas.
Quando as nuvens começaram a cair sobre as consciências azafamadas que percorriam as ruas, eu já havia encostado no banco desconfortável de uma cafeteria. Ainda era possível assistir aos passantes misturando-se em turbas do lado de fora, o que fiz com a reflexão irremediável sobre o fato de o homem se recusar à solidão de quando em quando. A própria companhia nunca basta, o tédio desassossega. É necessário à espécie sentir as ruas ecoarem palavras de fugacidade por onde corre a realidade, deixar-se levar pelo calor e pelo vento e pela chuva que não levam a lugar nenhum, dar liberdade à multidão que nos faz espírito e imensidão.
Tempos avulsos
Não sei bem se me importo com a forma das árvores que ficam nos fundos da minha casa. Nunca me peguei contemplando a luminosidade do sol nas ruas logo de manhã, quando estou de saída. Nunca percebi que, rotineiramente — artificialmente —, faço o mesmo caminho porque ele me leva mais rápido ao meu reiterado destino.
Essa obrigação de ter que querer saber tudo é um não saber em si, é uma necessidade de perder-se em essência porque não há essência no que não se basta.
O dia se inicia e se definha, pouco a pouco, com o nascer e o cair do sol — assim como a noite se definha pouco a pouco com os degradês da escuridão. E tudo (o)corre dentro da mesma atmosfera incerta, dentro do mesmo ponto de vista mecânico para o mundo, o que talvez pareça um resumo carrancudo da realidade, mas espero sempre um olhar para o entorno a fim de quebrar os pontos de vista que me fazem fugir das visões que tenho. Uma realidade enlatada, uma liberdade enjaulada, uma energia não dissipada.
E os significados? Talvez você saiba dizer, mas dizer não basta.
Então me coloco desinteressado nas pequenas teorias diárias, as quais constantemente se dizem infalíveis para expressar o que se passa no permear dos dias, mas não sei bem se essas fugas me desapropriam do mundo ou se me preparam para senti-lo melhor.
A verdade é que o interregno entre o amanhecer e o dormir passa como um corte de ave no céu matutino a desencadear uma série de emoções em sua passagem instantânea. E acontece que não podemos esperar em nossa azáfama por terminar o dia e seguir para o próximo como se fossem páginas de uma história da qual logo se deseja o final surpreendente.
Mas não há qualquer surpresa no final. As sensações de fato buscadas encontram-se levemente disseminadas pela intercorrência das horas, pelo dizer das palavras intercaladas por risos e suspiros que logo se amealham e chegam ao fim, passageiras que são à espera de um lugar na próxima condução.
E tudo não passa de uma sutil experiência de tempos avulsos quando não se quer encontrar consigo próprio, quando se quer passar os momentos enfurnado na própria solidão inexpressiva, a qual não permite sentir o entorno, exceto pelas reais necessidades que surgem enquanto a alienação se mantém.
E o que guardo das tantas teorias infundadas sobre os dias, sobre a passagem das horas, sobre a felicidade cega que se busca nesse trajeto tortuoso a que resolveram nomear “destino”, é que o real subterfúgio se encontra encoberto na experiência que se constrói com as coisas factuais, disso resultam as mais profundas conclusões passíveis de ser alcançadas, ainda que por mentes pragmáticas.
Pois o passar do tempo nessa solidão cansada das pessoas civilizadamente urbanas é um correr em círculos ao redor de um eixo, feito ponteiros que se perdem por esforço repetitivo na falta de histórias que extravasam o correr do tempo.
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito e estudante de Letras – Português e Literaturas. Ocupa a cadeira n. 07 da Academia Campista de Letras (ACL), patronímica de Eloy Ornelas. É, também, membro da Academia Pedralva Letras e Artes e de outras instituições culturais. Site: www.ronaldojuniorescritor.com

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